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Eu! Eu! Eu!

26 de Novembro de 2020


«Como disse não sei quem, só há duas coisas certas na vida: a morte e as reportagens da RTP sobre os livros de José Rodrigues dos Santos (JRS). Todos os anos, quase sempre em Outubro, os jornalistas da televisão pública fazem o frete de promover os negócios particulares de JRS, o rosto de cimento do Telejornal da RTP, casa onde já foi por duas vezes director de Informação. (João Pedro George)

Há muito tempo que a RTP serve de suporte e de conteúdo para JRS incrementar as vendas dos seus romances (cuja leitura não recomendo, pois além de maus são demasiado longos e a vida é demasiado curta).

Os exemplos não faltam. Aí vão alguns: a 26 de Setembro último, o Telejornal passou uma reportagem a propósito de O Mágico de Auschwitz, um tema (o Holocausto) que “não tem sido abordado pelos escritores portugueses” (JRS). Em seguida, a 8 de Outubro do mesmo ano, JRS foi um dos convidados de A Nossa Tarde, programa apresentado por Tânia Ribas de Oliveira, onde conversaram sobre o novo livro do jornalista que pisca o olho no fim do telejornal das 20h. Semanas depois, a 13 de Novembro, o Telejornal transmitiu uma peça sobre “O Manuscrito de Birkenau”.

Na semana passada, a 18 de Novembro, JRS foi o convidado da Grande Entrevista, com Vítor Gonçalves, para falar durante meia hora daqueles dois livros. Por certo, era a terceira vez que JRS pisava o estúdio da RTP3 para ser entrevistado por Gonçalves: em 27 de Novembro de 2013, para difundir O Milionário de Lisboa, e a 30 de Outubro de 2014, para falar de “A Chave de Salomão”.

Como vêem, JRS aproveita-se impudicamente dos recursos públicos da RTP para estimular (rendibilizar) os seus interesses particulares, dilatando os proventos dos direitos de autor. Dito de forma mais crua, JRS vale-se do seu cargo numa empresa paga por todos nós – estatal e dispendiosa –, e do trabalho dos seus companheiros, muitos dos quais numa posição hierárquica inferior à sua, para divulgar (de borla!) os livros que publica na editora Gradiva.

Querem mais exemplos? Ei-los, sem demasiada preocupação de ordem: o Telejornal de 26 de Outubro de 2019 noticiou a publicação de Imortal, mais um romance escrito (para nosso deleite) pelo “escritor favorito dos portugueses, no apogeu do seu imenso talento”, e protagonizado pelo “grande herói das modernas letras portuguesas” (Tomás Noronha).

A 4 de Julho do mesmo ano, foi entrevistado pelo jornalista Carlos Daniel, tendo discorrido, durante 45 minutos, sobre os seus processos de produção maciça de livros (e respectivas estratégias de embrutecimento metódico dos leitores). No dia 5 de Outubro de 2020, o Jornal da Tarde anunciou o lançamento da edição francesa de Imortal, e a 27 de Outubro de 2018, o Telejornal informava-nos que tinha acabado de sair A Amante do Governador, e no dia seguinte, no Jornal da Manhã, o fenómeno repetiu-se (a repetição é a arte das indústrias culturais). Pouco depois, a 4 de Dezembro, JRS esteve no programa matinal Praça da Alegria a vender o seu peixe (e a imagem alucinante de si próprio).

A 17 de Setembro de 2017, no programa vespertino Agora Nós, JRS foi entrevistado por Tânia Ribas de Oliveira e José Pedro Vasconcelos, sob o fastidioso pretexto do lançamento de”O Reino do Meio”, livro que o confirmava como “o mestre dos grandes temas contemporâneos”.

No dia 8 de Outubro de 2016, ainda o romance “Vaticanum” mal tinha acabado de sair do forno — livro em que JRS mostrava “uma vez mais por que razão é considerado o mestre do mistério real” —, já o Telejornal se transformava num instrumento de tortura e entrava na casa de milhões de portugueses para lhes impingir os produtos do génio da Avenida Marechal Gomes da Costa.

A 25 de Outubro de 2015, a mesma coisa, mas agora com “Flor de Lótus”, livro “de um género inexistente em Portugal, mas cá estou eu, nem que seja para inovar” (JRS). Em 2012, uma das emissões do programa Portugal Aqui Tão Perto foi dedicada, durante 55 minutos, ao livro “A Mão do Diabo” e ao percurso de vida de JRS. Em 2016, por causa de “Vaticanum”, foi o convidado principal do programa Cinco para a Meia-Noite, com Filomena Cautela.

No dia 25 de Outubro de 2014, o Jornal da Tarde pôs no ar uma peça sobre “A Chave de Salomão”, um livro modestíssimo que nos desvenda (o sonho é livre, sonhemos) as “espantosas ligações entre a mente, a matéria e o enigma da existência”.

A 3 de Março de 2008, a presença dos livros de JRS fez-se notar, durante mais de meia hora, no programa Sexta à Noite (RTP1), conduzido por José Carlos Malato. Meses depois, a 25 de Outubro, as antenas da RTP transmitiram a notícia do lançamento de “A Vida num Sopro”, a obra de JRS que trouxe “o grande romance de volta às letras portuguesas”.

Em 2010, a jornalista Cecília Carmo cavaqueou (aviso de aliteração) com JRS, na RTP2, sobre a obra “Conversas de Escritores”, compilação das entrevistas realizadas para a RTP N (“a grande entrevista literária está de volta”, garante-nos a Gradiva).

Em 21 de Outubro de 2011, o Telejornal fazia eco de “O Último Segredo”, o livro em que JRS voltava “a afirmar-se como o grande mestre do mistério” (e ele a dar-lhe, aqui tudo é “grande” ou vai ficar “maior”). Por incrível que pareça, poderia acumular mais exemplos, mas seria abusivo estender muito mais a lista…

Será que a RTP oferece aos outros escritores as mesmas oportunidades de divulgação? Quantos escritores conseguiram ir três vezes – quanto mais uma! – ao programa Grande Entrevista?

Convenhamos: com o tufão de publicidade que rodeia JRS, é fácil compreender o êxito destes livros. Se à apresentação das notícias em horário nobre juntarmos a exposição mediática que a RTP, permanente e sistematicamente, faz das suas obras, levando-as ao colo, percebe-se que os tijolos de JRS vendam aos milhares.

Numa época em que as coisas se dividem entre quem está muito cotado e quem está pouco ou nada cotado no mercado de valores mediáticos, entre quem aparece muito e quem aparece pouco nos ecrãs de televisão, escusado é dizer que o afã de JRS para se impor aos leitores e se autopromover (à boleia da RTP) tem dado excelentes resultados.

O que terá o provedor da RTP a dizer sobre esta utilização descarada dos serviços da televisão pública por parte de um dos seus funcionários mais conhecidos (e um dos seus quadros mais bem pagos)? Estatuto esse que só acentua as responsabilidades que impendem sobre um jornalista que tanto se gaba de ter trabalhado na BBC…

JRS devia ser um dos primeiros, na RTP, a dar o exemplo. Ou não consta do Código de Ética e Conduta da RTP — que JRS deveria conhecer a fundo — uma norma que considera “inadmissível a manutenção de situações irregulares ou de favor”?

Na verdade, JRS ignora uma lei essencial da física literária: os livros não precisam, para serem bons, que o seu autor ande sempre em bicos de pés, a procurar promoção, a dar ordens aos colegas de redacção ou a pedinchar-lhes favores (que comprometem quem os faz e envergonham quem os aceita). Resumindo, que a quantidade não produz, por pura acumulação, qualidade.

A triste figura a que desce uma pessoa só para dizer: Eu! Eu! Eu!»

João Pedro George, “Sábado”, 25 novembro 2020

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