Home » Opinião

Sine qua non

22 de Setembro de 2020


Polícia usando o símbolo de QAnon

A Televisão e as redes sociais dão-nos diariamente bons exemplos desse comportamento, em tempo real, como agora se diz. Do lado mais soft, em entrevistas com o Homem da Rua, por vezes cheio de certezas (as dúvidas são para os fracos). A uma pergunta do tipo “em que se baseia” ou “onde leu isso”, a resposta é um sorriso matreiro e a expressão “eu sei…” e “nem preciso de ler!”. Do lado mais hard, são as campanhas de desinformação, empregando meios vultuosos, sempre apelando ao instinto e à intuição, e nunca à simples constatação dos factos, que em regra desmentem as teorias. (Nuno Santa Clara)

Eis uma locução bem conhecida, sobretudo de quem navega pelas áreas do Direito, da Filosofia ou da Matemática, entre outras. Não se trata de um assomo de erudição gratuita, mas apenas de rever o conceito contido na citada frase latina; em português, “sem o que não pode ser”, ou seja, a definição de uma condição necessária.

Tudo parece claro para quem se orienta pelos princípios de raciocínio aceites pela nossa matriz filosófica, baseada nos clássicos gregos, depois transmitida do cadinho mediterrânico para o resto do continente europeu, e daí para todo o Mundo, embora com aceitação variável.

Não sem algumas resiliências. As doutrinas totalitárias reinantes em boa parte da Europa entre as duas Guerras Mundiais apelavam à intuição e ao instinto, e não à dedução e ao estudo.

O pior é que nem os resultados catastróficos dessas duas guerras lograram erradicar essas correntes de arrebanhamento; elas aí estão, por vezes de modo cândido e aparentemente inócuo, outras vezes de modo assumido, programado e aplicado por quem as inventa ou desenvolve, de forma a causarem calafrios a quem tenha um mínimo de memória ou de conhecimento da História.

A Televisão e as redes sociais dão-nos diariamente bons exemplos desse comportamento, em tempo real, como agora se diz.

Do lado mais soft, em entrevistas com o Homem da Rua, por vezes cheio de certezas (as dúvidas são para os fracos). A uma pergunta do tipo “em que se baseia” ou “onde leu isso”, a resposta é um sorriso matreiro e a expressão “eu sei…” e “nem preciso de ler!”.

Do lado mais hard, são as campanhas de desinformação, empregando meios vultuosos, sempre apelando ao instinto e à intuição, e nunca à simples constatação dos factos, que em regra desmentem as teorias.

Neste capítulo, um caso célebre foi o dos chamados “Protocolos dos Sábios do Sião”, texto forjado pela Okhrana, os serviços secretos do Czar Alexandre III e do seu sucessor Nicolau II; neles era descrito um projeto de conspiração global por parte dos judeus e maçons, de modo a conseguirem a dominação global, naturalmente arrastando a destruição do mundo ocidental – no qual se inseria a Rússia. Nem a publicação das origens do documento, nem a divulgação dos arquivos, conseguiram apagar esta mistificação; depois de largamente publicitada pelos nazis, entre outros, ainda hoje circula na internet, e são tidos como bíblia pelos seguidores da teoria da conspiração, para quem os argumentos se sobrepõem aos factos.

Mais de um século depois de Nicolau II, e de meio século depois de Hitler, os métodos continuam os mesmos – e o grau de eficácia, aparentemente, também.

Um dos mais recentes exemplos é a QAnon.

O que é isto? Uma teoria de conspiração, surgida em 2017, segundo a qual forças profundas e obscuras se preparavam para derrubar pela força o Presidente Donald Trump.

Quem seriam os malvados conspiradores? Naturalmente, os suspeitos do costume: Barack Obama, Hillary Clinton e… George Soros, que aparece aqui um pouco como Pilatos no Credo. Haveria outros, mais ou menos óbvios, como Jeff Bezos ou Elon Musk, mas vá-se lá saber qual foi o critério de escolha.

Para apimentar a conjura, não faltam na trama os atores mais liberais de Hollywood (como no tempo do Senador Joseph McCarthy e da sua caça às bruxas), políticos do Partido Democrata (naturalmente) e altos funcionários do Governo (como na tradição macartista). E também referências a satanismo e a tráfico sexual de crianças (talvez aproveitando as separadas dos pais pela atual Administração, tornadas assim mais vulneráveis).

A teoria da conspiração da QAnon ultrapassa assim largamente em mística os Protocolos dos Sábios do Sião, que, no seu conceito, se limitavam a querer a raça judaica a dominar o Mundo, sem meter ao barulho “Satanás e outros espíritos malignos, que andam pelo mundo para perdição das almas”, segundo a fórmula antiga.

Não seria de levar muito a sério, se não fosse aquela imagem de um defensor da Lei & Ordem, devidamente fardado e equipado, ostentando em local bem visível o emblema da QAnon (que não deve fazer parte do plano de uniformes – esperemos), em amena cavaqueira com o Vice-Presidente Mike Pence.

Desde os alvores do Liberalismo às modernas Democracias, tem sido norma o esforço pela educação dos povos. Se estes devem tomar em mãos o próprio destino, então devem estar esclarecidos sobre a Res Publica, a Coisa Pública que fascinava os gregos e os romanos, e que hoje tem amplitude nunca sonhada.

Mas extensão não implica necessariamente qualidade. Sabem-no bem os políticos que preferem os slogans aos debates. Como magistralmente ilustrou George Orwell no seu Animal Farm (O Triunfo dos Porcos) quando põe os ditos porcos a treinar os carneiros para berrar em uníssono “quatro pernas bom, duas pernas mau” quando queriam interromper um debate, qualquer que fosse o assunto.

Se fosse hoje, gritariam “Make the Farm Great Again”…

Será a educação um sine qua non para a Democracia?

No tempo de Salazar, era esse um dos principais argumentos para a legitimação do poder autocrático. O Povo não estava preparado para a Democracia. E, não fazendo nenhum esforço para mudar as coisas, estaria a Democracia adiada para as calendas gregas…

Por outro lado, o povo alemão era dos mais educados da Europa, e nem por isso impediu os nazis de chegar ao Poder – e de modo legal.

De modo que a condição sine qua non para viver em Democracia é viver a Democracia.

E é isso que quem impedir os criadores das teorias da conspiração, e os seus fiéis a acéfalos seguidores. Trocando o debate pelo slogan, ainda que absurdo, na linha do General Millán-Astray, na sua célebre intervenção de 1936, na Universidade de Salamanca (cujo reitor era Miguel de Unamuno): “Muera la inteligencia! Viva la muerte!”

Sine qua non, sem o que não: uma das formas de fundamentar raciocínios, dentro do racionalismo que é o alicerce das nossas instituições.

Para que assim continue, terão que ser combatidas e ultrapassadas teorias desprovidas de razão histórica, social, científica ou política.

Ou seja, sine QAnon: sem QAnon.

Nuno Santa Clara

Imprima esta página Imprima esta página

Comente esta notícia.

Escreva o seu comentário, ou linque para a notícia do seu site. Pode também subscrever os comentários subscrever comentários via RSS.

Agradecemos que o seu comentário esteja em consonância com o tema. Os comentários serão filtrados, antes de serem aprovados, apenas para evitar problemas relacionados com SPAM.