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O arquivo do ​”Diário de Notícias” e​m questão

29 de Maio de 2020


Com a dispersão, qualquer arquivo corre perigo devido, nomeadamente, à diluição de responsabilidades. Todos conhecemos arquivos de publicações desaparecidas que não sabemos onde param. (Leonel Gonçalves)

Desde há vários anos que as alterações na propriedade do DN têm conduzido a interrogações sobre o Arquivo do jornal, especialmente entre pessoas ligadas à comunicação social.

No almoço de confraternização, que os antigos empregados do DN realizam todos os anos, no dia do aniversário do jornal, o tema tem sido sempre largamente abordado, como, aliás, já tinha sido a questão do edifício da Avenida da Liberdade, que motivara até a aprovação de um documento.
E eis que surge agora um Requerimento, assinado por dois antigos Presidentes da República e figuras prestigiadas da comunicação e da cultura, solicitando a classificação urgente do Arquivo do DN. Esta designação, usual na Imprensa, compreende a Biblioteca, Hemeroteca, Filmoteca, Fototeca e um conjunto de obras de arte.

Quando fui ler a resposta de Pedro Tadeu ao Requerimento e vi o título, apanhei um susto que me deixou arrepiado. O pior é que no segundo parágrafo está lá tudo explicado: ” o Arquivo do Diário de Notícias não existe ​desde, pelo menos, 1991​” (sublinhado meu), por ter sido comprado pela Lusomundo. Fiquei com um problema de identidade: não sei como é que eu julgo que dirigi, durante cerca de 10 anos, um arquivo que não existia.

Pedro Tadeu parece desconhecer que os Arquivos do DN e do JN, embora pertencendo à mesma empresa, mantiveram a autonomia. O mesmo tinha já acontecido com o Arquivo de “A Capital”, quando este jornal pertenceu à empresa do DN.

Ao longo da década de “90, as Administrações colocaram a questão de integração dos Arquivos. Nesse sentido, participei em várias reuniões, no Porto, nas quais um Administrador estava sempre presente. A perspectiva da junção dos Arquivos do DN e do JN nunca obteve consenso. O erro de base radica no desconhecimento dos princípios e normas essenciais pelas quais se rege a organização e preservação dos arquivos. No caso presente, cito o princípio da proveniência, o qual estabelece que os arquivos originários de uma instituição devem ser conservados sem dispersão, e de acordo com a ordem primitiva, já que têm carácter único, em função do contexto em que foram produzidos, adquiridos, tratados e utilizados.
Outro equívoco é a afirmação de que a microfilmagem de todo o DN decorreu da iniciativa da Lusomundo, nos anos “90. Na verdade, foi iniciada em 1970, em resultado de uma proposta que apresentei à Administração. Trabalho realizado pelos próprios profissionais do Arquivo, com uma máquina adquirida para o efeito, beneficiando do apoio e formação da Kodak.

É claro que o Requerimento apresentado também contém incorrecções. Uma delas é a que refere documentos originais de várias figuras da cultura do século XIX que, de facto, não existem. Outra, é a alusão a um arquivo de zincogravuras. Esse acervo foi extinto, por deixar de ter utilização, devido a alterações técnicas no processo de impressão do jornal. Guardou-se uma pequena quantidade para memória futura. Algumas dessas gravuras foram oferecidas ao Museu Nacional de Imprensa, do Porto, a pedido do seu Director, Dr. Luís Humberto Marcos. Outra afirmação que necessita de esclarecimento é a de que o Arquivo teria perto de 35 000 livros. De facto, chegou a dispor desse número, a maior parte oferecidos pelas editoras, com vista a uma referência crítica. Porém, a partir de 1970, a par da adopção de um critério mais rigoroso de selecção, na entrada dos livros, iniciou-se um trabalho, que durou alguns anos, de expurgo das obras que não correspondessem aos objectivos dos serviços. Os milhares de livros abatidos foram oferecidos a colectividades de recreio e outras instituições culturais. Curiosamente, Pedro Tadeu não se refere à existência da biblioteca. Tenho, contudo, a informação que ela foi oferecida a uma instituição de Lisboa. Parece-me importante que Pedro Tadeu esclareça este assunto.

Creio que ninguém põe em causa o valor do património arquivístico à guarda da Global Media Group (GMG). Estranhamente, não refere o Arquivo da TSF que, certamente, dispõe de documentos em suporte não digital. O que as personalidades que assinaram o Requerimento desejam, no meu entendimento, é que o Arquivo do DN, aquele que se encontrava no edifício da Avenida da Liberdade, seja classificado, para garantir a preservação, evitar a dispersão, a alienação, o extravio e proporcionar a jornalistas, professores, estudantes, investigadores e demais interessados, o acesso fácil a toda a informação que ele contém. Com a dispersão, qualquer arquivo corre perigo devido, nomeadamente, à diluição de responsabilidades. Todos conhecemos arquivos de publicações desaparecidas que não sabemos onde param. Pedro Tadeu cita o depósito de “O Comércio do Porto”, um jornal centenário, no Arquivo Sophia de Mello Breyner, em Gaia, mas não refere o que aconteceu ao Arquivo. Sabe, certamente, que foi vendido para Espanha. Um crime!

Finalmente, sugiro a Pedro Tadeu que evite a tentação de pensar que o património documental da GMG é um Arquivo. Poderá ser um conjunto de arquivos distintos. Não há arquivos iguais, em rigor, nem sequer, semelhantes. Todos são únicos, por uma ou outra razão. O Arquivo do DN é único, por, entre outros motivos, possuir o maior arquivo de negativos fotográficos da Imprensa em Portugal. De parecido, só havia “O Século”. Nesse campo, o JN é uma tristeza. A alguém faltou a visão, a firmeza e a coragem de enfrentar o lobby dos fotógrafos. No DN granjeámos o privilégio de ter tido um jornalista, António da Costa Leão, que se tornou um arquivista exímio e, a partir de 1924, iniciou o arquivo sistemático dos negativos (ainda em vidro), que se manteve até à chegada do suporte digital.
Os responsáveis do Arquivo tiveram, em certos períodos, enormes dificuldades em conservar a posse dos negativos, que também vivi, perante a oposição de alguns fotojornalistas. Costumava dizer que os arquivos dos jornais são património das empresas proprietárias, mas são também património do país. Tal como a cerâmica de Barcelos, as tapeçarias de Portalegre ou obras da Vista Alegre. Nesse sentido, se o Arquivo do DN correr riscos, o Estado deve intervir.

Leonel Gonçalves – Antigo diretor do arquivo do Diário de Notícias

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Nota: A opinião de Leonel Gonçalves é, dada a sua ligação ao arquivo do DN, relevante no debate em curso e é importante ouvi-lo, até pela memória profissional (de 1970 a 2000) que preserva, corrigindo, e bem, erros meus, como o do ano do início da microfilmagem. Não consigo, porém, concordar com ele quando defende que o arquivo DN manteve autonomia desde 1991 – basta o orçamento, o financiamento e a gestão dessa estrutura terem passado a ser comuns com o JN, num orçamento global, fora do orçamento próprio do Diário de Notícias para, do ponto de vista de estrutura empresarial e administrativa, a junção dos arquivos ser factual, independentemente da autonomia funcional de cada departamento. Além disso, a partir de 2003, passou mesmo a haver uma direção unificada e essa autonomia desapareceu. Este desacordo não enfraquece, porém, o que nos une e que é muito mais importante: todo o património em causa, tenha origem no DN ou no JN, deve ser tratado com a mesma importância.

Pedro Tadeu – Diretor da Direção de Documentação e Informação do Global Media Group

(“Diário de Notícias” – 27 maio 2020)

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