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Valentina: um símbolo, um país – os media e a educação

23 de Maio de 2020


Não será tudo isto fruto da violência que os media nos despejam todos os dias das mais diversas formas? O ódio ao humano, o permanente cortejar da morte, a sexdução permanente e que reduz tudo ao deve-e-haver do mercado das emoções, tudo isto não está relacionado? (António Carlos Cortez)

A seis quilómetros da casa do seu pai, Valentina é encontrada morta, com sinais de agressões múltiplas, depois de horas no estertor do sofrimento. O pai é o principal suspeito. Um pai jovem, que deu como desaparecida a filha de 9 anos. Nove anos de um passado indescritível, e por isso a fuga de casa do progenitor, provavelmente porque de há muito o terror doméstico fazia parte do ritmo quotidiano. Um pai que, dizendo às autoridades que a filha teria fugido, alimentou a ficção de um possível rapto. Sintomaticamente, pai e madrasta não participaram nas procuras incessantes que o povo da Atouguia da Baleia realizou. Esta é uma população fraterna, solidária, de gente humilde, vivendo numa região de empregos precários… Pequenos negócios familiares, cafés, bares nocturnos, uma ou outra empresa que alberga umas dezenas ou centenas de trabalhadores… Zona do país, como tantas outras, refém dos tubarões do progressismo: a televisão, a hidra tecnológica – iPhones, tablets, publicidade, as tentaculares redes sociais, um empresariado quantas vezes desconhecedor da vida real dos seus assalariados… A violência deste caso pode ter outras causas que não apenas a natureza bestial de quem perpetrou o crime.

Pelos contornos que adquire, o assassinato de Valentina merece a reflexão de todos. A meu ver, o próprio Presidente da República deveria fazer uma declaração ao país, tantos são os sintomas de doença da sociedade civil. Pensar impõe-se. Não sabemos em que contexto social, afectivo, económico, laboral vivem e viveram o pai e a madrasta de Valentina. Mas as imagens falam: Vivemos atolados numa atmosfera de intolerância, de violência, de boçalidade vaidosa. País de selfies para enganar o desespero… Num registo crescente, esmagando-se valores e princípios, a República vai-se corroendo. Não serão Valentina e o pai vítimas deste tempo de “cegueira moral”, para usar aqui a imagem certeira de Zygmunt Bauman?

O pai de Valentina, os estudantes que morreram na praxe do Meco, os episódios de agressão de alunos a professores (da Carolina Michaelis, no Porto, à escola Stuart Carvalhais, lembram-se?), o assalto no Campo Grande, que ceifou a vida a um estudante de 24 anos, há poucos meses; para não falar das dezenas de mulheres agredidas e mortas pelos seus algozes a cada ano que passa… não será tudo isto fruto da violência que os media nos despejam todos os dias das mais diversas formas? O ódio ao humano, o permanente cortejar da morte, a sexdução permanente e que reduz tudo ao deve-e-haver do mercado das emoções, tudo isto não está relacionado? Os líderes mundiais – com Trump, Putin, o ditador chinês e outros da mesma têmpera, de Orbán a Bolsonaro – e, em grande medida, os dirigentes dos grandes impérios multimédia, não alimentam, afinal de contas, as forças bestiais da alma… Nunca como agora, em tempo de pandemia (que serve que interesses económicos? Que empobrece quem?) as palavras de Kaváfis sobre os bárbaros me pareceram tão verdadeiras.

É gravíssimo o caso de Valentina pelo que encerra de espelho de uma comunidade que, pobre, sem horizontes, apenas encontra nos programas televisivos e nas alienantes plataformas digitais o sentido para a vida. Não por acaso a criança cuja morte nos dói foi para a casa do pai para ter acesso às aulas online… Não tinha a mãe um computador no seu domicílio e, por isso, não lhe restou outra saída: entregar a filha às mãos do assassino. Computadores, jogos de guerra, brutalização das populações, guerra das audiências, o mito da competição em todas as áreas – dos afectos às profissões, a educação transformada em campo de ensaio para o rendimento a quanto custe – o patrocínio de personalidades que, num país mais civilizado, não poderiam nunca ter programas de televisão e não poderiam jamais gozar do poder simbólico e efectivo de que dispõem, tudo concorre para que o Mal se torne na única moeda de troca. Nesta época em que estamos já enclausurados no virtual que nos vendem como salvação, receio bem que no espaço de uma década, ou nem tanto, o desprezo pelo Outro seja considerado “o novo normal”…

Nos anos 50, Wladimir Porché referia-se à televisão como autêntico “robot bicéfalo, perigo para a cultura verdadeira”. Bicéfalo porque actua em dois campos: o do pensamento e o campo das imagens. Ubíqua, omnipresente, a televisão, e hoje a internet, produz as imagens que, dopados, drogados, os povos querem ver. O regurgitar constante de cenas violentas anestesia a compaixão, empobrece a capacidade imaginante, mata a curiosidade e a alteridade. Os programas de entretenimento que nos oferecem são de uma indigência soez. O processo de bigbrotherização atinge formas concretas de apelo à pornografia, à insensibilidade perante o outro, dando-se voz a figuras menores que conquistam as luzes da ribalta e, assim, influenciam, conduzem, doutrinam. De Cristina Ferreira a André Ventura, o naipe é vasto, preocupante.

Valentina é, pois, vítima da sociedade que se está a construir. Uma sociedade em que os laços intergeracionais se vão perdendo, em que tudo o que é chocante hoje passa a ser admitido amanhã. Um sintoma óbvio da degenerescência do nosso colectivo está no desprezo sub-reptício, ou declarado, das elites em relação aos que representam a cultura letrada. O poder alimenta a televisão e a televisão alimenta o poder. Ambos têm um só fito: audiências. É por isso raro vermos hoje alguém que, com obra feita e cidadania activa e responsável, tenha lugar num programa com audiências onde pudesse alertar, divergir das opiniões sempre iguais. Esse tipo de programas nem sequer existe. Parte-se do princípio de que ninguém o veria. De facto, um programa que formasse as massas, educasse para sensibilidade, proporcionando uma gradual consciência cívica dos portugueses, a quem pode interessar?

Valentina foi a enterrar e com ela um pouco mais desse Portugal que, quem sabe, já não existe – esse Portugal Velho, mas digno, esse país que (a não ser que tudo seja construção retórica e ideologia oca) muitos reconhecem nas pessoas simples e sensíveis, trabalhadoras e honestas – esse povo-povo tão explorado. Valentina é o país real. País pobre (e que esta pandemia mais pobre tornará); país de assimetrias brutais entre litoral e interior. É o país da baixa taxa de natalidade, porque os jovens não têm salários dignos para uma vida digna. É o país da morte lenta dos velhos (nos lares onde a covid-19 mais matou – antros de exploração dos reformados e suas famílias). É o país dos cafés de bairro onde se existe entre uma “sandes de presunto” e uma “jola”… País dos Sábados e Domingos passados em casa a ver televisão, a pôr a criança “online” para que não aborreça os já desvitalizados pais e mães (dê-se-lhes telemóveis desde bebés, veja-se quão proficientes são com os polegares e indicadores!… ainda que depois nem saibam pegar numa esferográfica, ou ler, ou escrever bem…). No limite, Valentina não necessitava de “tele-escola”, as nossas crianças e jovens não precisam de mais tecnologia e veneno virtual… As nossas crianças e jovens necessitam de uma Escola e de uma sociedade civil mais humana. Uma escola que lhes dê cultura, memória, leituras que produzam imaginação e reforcem o seu caminho de auto-descoberta e amadurecimento anímico. Valentina, na verdade, somos muitos de nós, violentados de diversas formas ao longo da vida, morrendo todos uns dias mais um pouco porque, todos os dias, temos de trair a criança que fomos, os sonhos que tivemos, em nome não se sabe de que produtividade…

No país com mais de dois milhões de pobres, num país onde as taxas de obesidade infantil mostram à saciedade quanto o ideal de vida deste tempo é errado; num Portugal à mercê dos mandos e desmandos da Europa à deriva; neste rectângulo sem produção nacional, que viveu do enganador turismo e agora tem milhares nas ruas da amargura; neste pedaço de terra que desmantelou sectores axiais (das pescas à agricultura, da indústria à educação – é ver o inferno dos concursos, a exploração e os salários de miséria); aqui onde a Banca tudo tem e as famílias contam tostões para pagar a mensalidade ao banco e a renda ao senhorio; neste Portugal de tantos que não têm ideal algum, projecto de vida vivo e salutar – foi aqui que Valentina nasceu. O pai dela também. Filhos, ambos, da violência crescente. Violência e insensibilidade gerais e que o “novo normal” dum dia-a-dia passado frente aos ecrãs irá ainda mais agudizar.

António Carlos CortezPoeta, crítico literário e professor

“Público” 17 maio 2020

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