Home » Opinião

O “Público” e a liberdade de expressão nos tribunais

6 de Março de 2010


Assegurar um debate de ideias e informações desinibido e contundente

1.”O Supremo Tribunal Militar (STM) que negou a Salgueiro Maia uma pensão por serviços distintos concedeu-a dois “heróis” dos que jugularam a nação durante décadas sem fim. O insulto é feito a Portugal e a cada um de nós. E eu devolvo-o: considero essa trupe de generais e de almirantes um punhado de parasitas, sem sentido de dignidade nem de amor à pátria, sem actos de heroísmo ou de valor que lustrem os galões que ostentam, sentados à manjedoura do Estado, sempre a reclamarem uma maior ração e talvez se sintam desprotegidos pela ausência da PIDE que lhes dava segurança”, afirmava Francisco Sousa Tavares num dos dois artigos publicados em 3 e 10 de Maio de 1992 que determinaram o julgamento de Vicente Jorge Silva, director do PÚBLICO, como cúmplice do crime de abuso de liberdade de imprensa. Apesar da morte de Francisco Sousa Tavares, os juízes do STM não desistiram da queixa contra o director do jornal. Na altura, foi publicado no Diário de Notícias e n”O Independente um abaixo-assinado, com mais de uma centena de assinaturas, de solidariedade com Sousa Tavares e Vicente Jorge Silva, tendo Mário Soares, então Presidente da República, manifestado o desejo de que fossem absolvidos, o que levou o almirante Sousa Cerejeiro, presidente do STM, a apresentar a sua demissão.

Em julgamento, provou-se que Vicente Jorge Silva não tinha tido conhecimento prévio do primeiro dos artigos e que o segundo artigo, por ser de cariz opinativo e atendendo aos traços pessoais do articulista bem como às circunstâncias de tempo e modo em que tinha sido escrito, não continha carga ou intenção difamatória. Apesar de ser um pouco “azedo”, pelo que, não cabendo a Vicente Jorge Silva censurar o mesmo, foi absolvido pelo colectivo presidido pela juíza Elisa Salles.

2.”Basta ler os excertos dos artigos recentes de Silva Resende, que publicamos nestas páginas, para se fazer uma ideia da personagem que o novel Partido Popular quer candidatar ao principal município do país. Será inverosímil e grotesco – mas é verdadeiro. Nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente mais grotesco e boçal, uma mistura tão inacreditável de reaccionarismo alarve, sacristanismo fascista e anti-semitismo ordinário. Qualquer figura destacada do Estado Novo ou qualquer presidente da Câmara de Lisboa durante o anterior regime passariam por insignes progressistas em comparação com este brilhante achado de Manuel Monteiro”, afirmava Vicente Jorge Silva no seu editorial em 10 de Junho de 1993, referindo-se à anunciada candidatura, pelo CDS, do advogado e jornalista Silva Resende à presidência da Câmara de Lisboa .

Silva Resende queixou-se criminalmente por difamação, tendo Vicente Jorge Silva sido absolvido pela juiza Maria Fernanda Pereira Palma, que, embora dando como provado que as expressões utilizadas para qualificar as ideias de Silva Resende eram “incisivas, deselegantes, ferozes e até brutais”, mas, ainda assim, protegidas pela liberdade de expressão constitucionalmente consagrada no nosso país. Assim não o entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, para onde Silva Resende recorreu, que, presidido pelo juiz desembargador José Guerreiro Madeira Bárbara, em 29 de Novembro de 1995, condenou o director do PÚBLICO em multa e indemnização a Silva Resende, por considerar que Vicente Jorge Silva, ao utilizar as expressões em causa, teria “admitido que tais expressões podiam dar a imagem de que Silva Resende era pessoa “alarve”, “grotesca”, “boçal” e “besta”, denegrindo assim a imagem pessoal deste, e apesar disso escrevera aquelas expressões aceitando este resultado como possível”.

O director do PÚBLICO queixou-se no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por considerar que, com a sua condenação, Portugal violara o direito à liberdade de expressão que se obrigara a respeitar ao aderir à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Em 28 de Setembro de 2000, Portugal foi “condenado”, pela primeira vez, pela violação de tal direito.

No entender do TEDH, “os escritos (de Vicente Jorge Silva) e em particular as expressões utilizadas podem passar por polémicos. Apesar disso, estes não contêm um ataque pessoal gratuito, porque o autor dá neles uma explicação objectiva”. Para o TEDH, “a invectiva política extravasa, por vezes, para o plano pessoal: são estas os riscos do jogo político e do debate livre de ideias, garantes de uma sociedade democrática” e, por isso mesmo, a condenação consagrada na CEDH.

3. “O governador civil de Beja, António Saleiro, possui hoje vasto património sem que se lhe conheçam negócios além dos combustíveis e sem que tenha recebido herança de peso. A sua ascensão no negócio da gasolina tem episódios pouco edificantes…”, afirmou José António Cerejo num conjunto de artigos, publicados em Outubro de 1997 no PÚBLICO, em conjunto com Carlos Dias e Eduardo Dâmaso, que investigavam a actuação do ex-presidente da Câmara de Almodôvar e governador civil de Beja.

António Saleiro queixou-se criminalmente contra os autores dos artigos, mas viu o processo ser arquivado por o tribunal entender que “pretender “silenciar” o direito dos jornalistas a darem a conhecer, aos restantes cidadãos, investigações ou indícios de práticas menos correctas dos seus “governantes”, seria cercear, de modo autocrático e abusivo, o substrato da democracia e abalar os alicerces do Estado de Direito instituído”.

Recorreu então o ex-governador civil de Beja aos tribunais cíveis, pedindo uma indemnização de 6.000.000$00. A juíza de 1.ª instância, Ana Luísa Bacelar, considerou ter havido da parte dos jornalistas um “desrespeito do dever geral de probidade” e condenou-os, em 13 de Junho de 2003, no pagamento de uma indemnização de ? 19.951,92, sentença que foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de que foi relator o juiz desembargador Francisco d”Orey Pires.

O Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre liberdade de expressão , em acórdão de 23 de Janeiro de 2005, de que foi relator o juiz conselheiro Moitinho de Almeida, absolveu, no entanto, os jornalistas e o PÚBLICO. Considerou o STJ que “o direito à liberdade de expressão não pode ter como limite absoluto o bom-nome e a reputação de terceiros. Tratando-se de questões de interesse geral, cabe à imprensa divulgar as informações e ideias a estas respeitantes e ao público o direito de as receber” e que, perante os factos devidamente apurados, “a liberdade do jornalista abrange o recurso a certa dose de exagero, mesmo de provocação, polémica e de agressividade”.

4.Em 5 de Novembro de 1998, os jornalistas Francisco Fonseca e Eduardo Campos Dâmaso publicavam no jornal PÚBLICO uma notícia dando conta que fora deduzida acusação pelo Ministério Público contra a empresa XPZ e outros, entre eles Nuno Delerue, ex-deputado do PSD, por crimes fiscais e outros. Nessa notícia, transcreviam excertos dessa mesma acusação, bem como partes do artigo que tinham publicado no jornal PÚBLICO em 1995 sobre essa matéria e que tinham dado origem ao processo criminal de que agora noticiavam a acusação.

Instaurado um processo crime por violação do segredo de justiça, Eduardo Dâmaso assumiu em julgamento o seu conhecimento da lei que proibia a divulgação da acusação, mas tinha considerado mais importante o exercício do direito/dever de informar.

O Tribunal de Esposende, em 25 de Maio de 2004, pela pena da juíza Paula Cristina da Silva Rivas, não hesitou em condenar o jornalista s pela prática do crime de violação de segredo de justiça na pena de 70 dias de multa à taxa diária de ? 25, num total de ? 1750, embora reconhecesse que “nenhum prejuízo para a investigação decorreu naturalmente da publicação da notícia”. A decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães em acórdão de que foi relator o juiz desembargador Manuel Cardoso Miguez Garcia.

O jornalista e o PÚBLICO queixaram-se no TEDH desta decisão que entendiam violar a sua liberdade de expressão e, em 24 de Abril de 2008, o TEDH considerou injustificada a condenação de Eduardo Dâmaso, declarando que Portugal violara o artigo 10.º da CEDH.

5.”Segundo indicações recebidas pelo PÚBLICO, o Sporting Clube de Portugal possui, desde, 1996, uma dívida de aproximadamente 460 mil contos, ainda não cobrada…”, escreviam, em 22 de Fevereiro de 2001, os jornalistas João Ramos de Almeida e António Arnaldo Mesquita numa notícia que tinha por título “Mais dívidas ao Fisco no Futebol – Sporting e Salgueiros entre os devedores”.

O Sporting Clube de Portugal recorreu aos tribunais para defender o seu bom-nome, posto em causa com a referência a uma dívida fiscal que afirmava não existir, pedindo uma indemnização de ? 500.000. Na 1.ª instância, a juíza Maria João Marques Pinto de Matos absolveu os jornalistas e o PÚBLICO, por considerar que os mesmos tinham cumprido o seu dever de informação e respeitado os “princípios de adequação e de proporcionalidade”, o que justificava a ofensa ao “crédito e bom-nome do Sporting”. O Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de Setembro de 2006, manifestou a sua total concordância com a sentença de 1.ª instância, mantendo a absolvição dos jornalistas e do PÚBLICO.

Recorreu o SCP para o Supremo Tribunal de Justiça, que, num acórdão de 8 de Março de 2007 de que foi relator o juiz conselheiro Salvador da Costa, condenou o PÚBLICO e os jornalistas a indemnizar o SCP na quantia de ?75.000 por afectação negativa do seu crédito e bom-nome. Para o STJ, numa situação que considerou como “fluida” quanto à existência da dívida fiscal, “não havia concreto interesse público na divulgação do que foi divulgado”, sendo certo que, no entender do autor do acórdão, o conflito entre, de um lado, o direito ao crédito e bom-nome de uma pessoa colectiva e, do outro, a liberdade de informação, “não pode deixar de ser resolvido em termos de prevalência do primeiro em relação ao segundo”.

Em Setembro de 2007, foi apresentada pelos jornalistas e pelo PÚBLICO uma queixa contra Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por esta decisão do STJ violar a liberdade de expressão, queixa que ainda não foi julgada.

Francisco Teixeira da Mota, Advogado – “Público” 5 Mar 2010

Imprima esta página Imprima esta página

Comente esta notícia.

Escreva o seu comentário, ou linque para a notícia do seu site. Pode também subscrever os comentários subscrever comentários via RSS.

Agradecemos que o seu comentário esteja em consonância com o tema. Os comentários serão filtrados, antes de serem aprovados, apenas para evitar problemas relacionados com SPAM.