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O jornalismo como “insinuação” e “teoria da conspiração”

8 de Dezembro de 2019


Numa sentença conhecida esta semana, o Tribunal Cível de Lisboa dá como provado que directores não dirigem e que notícias, títulos e manchetes são “opinião”, podendo ser “teorias da conspiração” sem por isso merecerem sanção. (Fernanda Câncio)

“Insinuam, deixam antever, dizem saber mas, ao cabo e ao resto, não dizem o que sabem. (…) As notícias colam títulos com realidades, nomes com casos, numa quase word salad [salada de palavras], pensamentos desorganizados, pontas soltas, em que muito mais do que dizer se sugere, se dá a entender, no fundo, ao cabo e ao resto, que onde há fumo há fogo, que alguma coisa há, que umas realidades e outras estão todas conexas, que é tudo muito grave, que há muito dinheiro envolvido, que é mais do mesmo, que os políticos são corruptos, que os interesses estão todos conexos numa trama invisível e etc., etc., etc.”

Destas notícias, assim, “fica apenas uma amálgama (…), uma autêntica teoria da conspiração em que o Correio da Manhã sabe, não há dúvidas. Os hiatos temporais, os saltos lógicos, são de tal ordem e feitio que não se alcança o que sabe e sobre o que é que o Correio da Manhã não tem dúvidas. Os factos aproveitáveis são desgarrados e não seguem qualquer cronologia”.

É assim que uma sentença datada de 3 de dezembro, do Tribunal Cível de Lisboa, assinada pelo juiz 8, descreve várias notícias, títulos e manchetes do diário aludido, respeitantes ao Processo Vistos Gold e publicadas em 2014 e 2015.

Poucas vezes se terá lido uma caracterização tão arrasadora do que nos produtos mediáticos da Cofina passa por jornalismo, mesmo se alguém munido de literacia e decência mínimas não pode deixar de concordar. É a conclusão que o tribunal tira dessa descrição que verdadeiramente espanta.

Antes de mais, o contexto: a sentença decide sobre uma ação cível do ex-ministro da Administração e ex-dirigente do PSD Miguel Macedo contra a Cofina Media e quatro dos respetivos funcionários pela publicação de tais notícias, títulos e manchetes no Correio da Manhã, as quais considera terem posto em causa o seu direito à honra e ao bom nome, assim como a transmissão na CMTV, em novembro de 2015, de excertos dos interrogatórios a que foi submetido no âmbito do Processo Vistos Gold e a notícia, dada no mesmo canal, de que tinha sido detido em novembro de 2014 – o que não aconteceu.

O tribunal condenou a empresa a pagar uma indemnização de 40 mil euros a Macedo pela exibição dos interrogatórios (que só poderia ocorrer caso ele e a autoridade judicial detentora do processo dessem o seu consentimento) e de 15 mil euros pela notícia falsa da sua detenção. Mas considerou que a “amálgama” de “suspeições”, “insinuações” e “teorias de conspiração” contida nas notícias do diário não merece sanção.

E que nenhum dos funcionários da Cofina em julgamento – o à data dos factos diretor da CMTV e CM, Octávio Ribeiro, e os três autores das notícias e das peças televisivas com os excertos dos interrogatórios, Tânia Laranjo, Eduardo Dâmaso e Henrique Machado, todos com carteira profissional de jornalista – deveria ser condenado.

O que a fundamentação destas duas decisões diz da ideia que este tribunal – e não só, atendendo à jurisprudência portuguesa – tem de como funcionam empresas de media, do que é jornalismo e do que se pode (deve?) aceitar sob essa denominação é realmente notável.

Comecemos pela absolvição do diretor dos dois títulos. Malgrado citar um acórdão do Supremo que estatui ser o diretor, “pela própria titularidade da função e pelas competências legais com que o onera o respetivo exercício, responsável pelos concretos conteúdos publicados, salvo se provar não ter conhecimento, ter-se oposto ou não ter podido opor-se à publicação”, o tribunal conclui que “não se provou” que Octávio Ribeiro tivesse “orientado, autorizado e determinado” a exibição dos interrogatórios, a notícia da detenção ou quaisquer outros conteúdos referidos na ação de Macedo.

Passámos assim da responsabilidade por inerência do diretor para o oposto. E o oposto, dado como certo pelo tribunal, é de que “o trabalho jornalístico está grandemente atomizado e que Octávio Ribeiro tem um papel quase protocolar e estratégico (…) sem intervenção de espécie alguma em conteúdos, títulos, subtítulos e imagens”.

Ficamos então a saber que se publicam coisas nos jornais e TV, ou pelo menos no Correio da Manhã e na CMTV, por geração espontânea, sem intervenção da cadeia hierárquica e mesmo à revelia desta. Que a exibição – à época uma estreia em Portugal – de interrogatórios judiciais, que toda a gente sabia ser ilegal (a lei é clara), aconteceu sem a direção tomar conhecimento. Quiçá entrou um desconhecido pelas instalações adentro e pôs aquilo no ar, tendo ocorrido, por coincidência feliz, um debate em estúdio sobre os interrogatórios com convidados como André Ventura e Rui Pereira. Terá sido o mesmo desconhecido, talvez, a pôr em rodapé a “notícia” da detenção de Macedo, que o tribunal também considerou não poder ser imputada à direção. Concebe aliás que se tenha tratado de um “lapso involuntário” – alguém, talvez, tropeçou num teclado e saiu aquilo – mesmo se o considera demasiado grave para ser “perdoado”.

Posto isto, não pode surpreender que o tribunal absolva Tânia Laranjo, que o Tribunal Criminal de Lisboa condenou em setembro pelo crime de desobediência por, precisamente, ser a autora das peças com as imagens e som dos interrogatórios de Miguel Macedo exibidas na CMTV, peças essas que têm a sua voz. Aliás na sentença que estamos a analisar nem é mencionada tal autoria: é a desconhecidos que o tribunal imputa tudo: “Ficou claro que, mesmo sem se ter apurado quem, em concreto, se encontrava na redação ou no estúdio de televisão, com poder de coordenação e de direção, as pessoas designadas para esse efeito, as pessoas incumbidas pela Cofina Media com esse fito, tinham conhecimento do teor das notícias e consentiam na respetiva publicação.”

Tudo isto é delirante que chegue, mas é no passo seguinte, ao desculpar aquilo que descreveu como uma amálgama de insinuações – as notícias do Correio da Manhã -, que o tribunal leva a ignorância ao ponto de consagrar uma nova definição de jornalismo.

Começando por dizer que, por não haver nas ditas notícias muitos factos aproveitáveis, “não é propriamente possível imputar uma verdadeira responsabilidade aos autores”, e que se estes “poderão ter visado a todo o custo leitores e audiências (…) tal desiderato não é, por si só, juridicamente censurável”, passa para a desresponsabilização total a coberto do sigilo das fontes: “É impossível saber qual a origem das notícias. Não é possível determinar se os jornalistas agiram com base em fontes fidedignas, que tornassem aceitável veicular que o autor agia da forma enunciada.”

Trata-se mais uma vez da total inversão ética: em vez de o facto de não dizer onde foi buscar a “informação” responsabilizar ainda mais o jornalista e o obrigar a muito maior prudência, é como se invocar fontes sigilosas lhe permitisse tudo – incluindo, como se constata, acusações sem provas, insinuações e suspeições sortidas.

A cereja no topo deste bolo venenoso é porém a justificação principal que a sentença dá para não sancionar as notícias, títulos de notícias e manchetes de notícias referidos: “Não impende sobre o tribunal o ónus de aquilatar da qualidade das opiniões emitidas, contanto estas se contenham dentro dos limites do razoável (…). Sob pena de se exercer uma verdadeira e própria censura, seguramente mais prejudicial ao interesse público do que a proliferação incessante de juízos, há que ter como aceitável a emissão de opiniões. No caso vertente, estas não extrapolaram o aceitável.”

Sim, acabaram de ler isto: um tribunal considera que notícias e títulos de notícias são “opiniões”. E como opiniões que são, nos termos da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que a sentença cita, “não se prestam a demonstração de veracidade”. Dentro desta lógica, cabe perguntar por que raio a notícia “Miguel Macedo detido” não pode ser uma opinião. Lá porque é mentira, não é razão para não haver quem acredite ser verdade.

Fernanda Câncio – “Diário de Notícias” 7 dezembro 2019

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