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Pesquisadora dá dicas para entrevistar pessoas traumatizadas

18 de Setembro de 2019


Luiza Bodenmüller, pesquisadora na Universidade de S.Paulo (Brasil), estudou os efeitos da abordagem dos jornalistas sobre um entrevistado traumatizado. A partir dos resultados da sua pesquisa, Bodenmüller compartilhou com a “Folha de S.Paulo” algumas orientações para jornalistas que pretendam entrevistar pessoas que passaram por algum trauma, sejam sobreviventes de desastres naturais, guerras ou abusos.

A pauta chegou do jeito clássico: “Precisamos de uma criança síria que tenha chegado ao Brasil recentemente”.

Era o auge da crise de refugiados, em 2015. O corpo do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado em uma praia da Turquia após o naufrágio do barco que sua família tomou para tentar fugir da guerra, estava estampado em todos os jornais, sites, canais de televisão e feeds de notícias, causando comoção sem precedentes. De uma hora para outra, todos os jornalistas brasileiros pareciam estar atrás do seu próprio personagem refugiado no país.

Então assessora de imprensa da Cáritas, uma entidade diocesana que vinha acolhendo sobreviventes da guerra síria em São Paulo, Luiza Bodenmüller atendeu o pedido. Após conversar com a equipe de saúde mental da organização, convidou uma menina de dez anos, que já falava bem português, e sentou-se para acompanhar a interação entre ela e o repórter.

“A entrevista foi horrível”, resumiu Bodenmüller. “As perguntas eram, ‘Ah, você viu a guerra? Você viu alguém morrer?’, sendo que ela tinha perdido boa parte da família na guerra.”

No dia seguinte, a mãe da garota relatou que a filha tinha dormido mal, chorado muito e que não comera nada desde o dia anterior. Para a assessora — que vinha percebendo reações similares em muitas das entrevistas que acompanhava, inclusive entre adultos —, aquilo foi um clique.

Motivada a entender os efeitos da abordagem dos jornalistas sobre um entrevistado traumatizado, começou uma dissertação de mestrado sobre o tema em 2017, que deve ser defendida no início de outubro. A partir dos resultados da sua pesquisa, na Escola de Comunicações e Artes da USP, Bodenmüller compartilhou com a Folha algumas orientações para jornalistas que pretendam entrevistar pessoas que passaram por algum trauma, sejam sobreviventes de desastres naturais, guerras ou abusos.

1) Respeitar o tempo do entrevistado
“Há determinados fenômenos que não se explicam no tempo da notícia, que é muito imediatista. O jornalista tem que ter isso em mente na hora de entrevistar alguém”, disse a pesquisadora. Ela ressaltou que, na psicanálise, traumas são considerados atemporais; apesar de existirem no passado, podem ser evocados com a mesma força do momento em que aconteceram. Limitar a duração das entrevistas a uma hora, perguntar se o entrevistado quer tirar um intervalo e não forçar perguntas podem tornar o processo menos desconfortável.

2) Deslocar o centro de poder na relação com a fonte
Em vez de buscar o controle da entrevista a todo custo, Bodenmüller recomenda deixar o entrevistado falar nos seus próprios termos, sem tentar induzir uma aspa mais impactante. “A gente não se abre para o inesperado. Se você não tem essa vivência, tem que estar mais preparado a ouvir do que a conduzir a entrevista.”

3) Deixar claro que responder não é obrigatório
Especialmente no caso dos refugiados, ficava subentendido que os jornalistas eram autoridades às quais eles deveriam responder — pelas suas roupas e atitudes, pelo português fluente, pela avidez nas perguntas. A pesquisadora recomenda se despir disso logo no início, deixando claro que a fonte não é obrigada a dizer nada que não queira, como detalhes do trauma que sofreu. Vale lembrar que não se trata de uma figura de poder, mas de uma pessoa em situação de fragilidade.

4) Jamais perguntar “Como você está se sentindo?”
“Acho uma pergunta abominável, muito violenta”, afirmou Bodenmüller, que a considera como dar “um zoom-in na dor”. Feita sem a intimidade necessária, ela pode fazer a pessoa reviver seus piores momentos em segundos, sem que isso, necessariamente, se converta em um depoimento mais vívido. Em vez disso, é recomendável propor que o entrevistado conte a própria história.

5) Abrir o diálogo sobre o processo de edição
A pesquisadora recomenda ser transparente com o entrevistado sobre como a sua história será narrada, editada e divulgada. Retomar o contato com a fonte para perguntar como ela está e o que sente sobre o que foi publicado ajuda a evitar que ela se sinta usada. Quando possível, pode ser benéfico deixar que ela leia o texto com antecedência — ainda que isso vá contra as regras das redações, o ritmo frenético da produção, e o que é ensinado nas faculdades de jornalismo.

Bodenmüller, que hoje atua como gerente de inovação do portal de fact-checking “Aos Fatos”, admite que sua pesquisa quebra alguns paradigmas arraigados na profissão. “Nós jornalistas, em geral, refletimos muito pouco sobre a prática. Estamos muito acostumado a operar nesse formato. Quando fugimos disso, a gente se perde.”

“Folha de S.Paulo” – Blogue Novo em Folha – 30 agosto 2019

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