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RTP, um camião louco com dois motoristas ao volante

8 de Setembro de 2014


O que os burocratas de ocasião fazem descaradamente não é racionalizar a RTP, é desarticular a empresa aos bocados, tornando-a inoperante, em benefício do outsourcing e dos negócios privados. Há situações flagrantes de gestão danosa. Entregaram a área da Produção de Programas a Eduardo Moniz, um concorrente declarado, que ali se instalou, sem precisar de levar nem armas nem bagagens. Desmembraram a direcção técnica, a culminar na destruição da manutenção, que era dotada de técnicos da mais alta competência não poupando sequer os especialistas da manutenção óptica das câmaras. Sem orçamento aprovado, sem ideias e sem dinheiro, a administração não sabe o que fazer. De alto a baixo, reina o improviso e o salve-se quem puder, a ponto de já ninguém saber a quem pedir responsabilidades. (Avelino Rodrigues)

RTP, um camião louco com dois motoristas ao volante

Os estatutos da RTP não seriam tão maus se não se prestassem a ser interpretados como uma tentativa da maioria PSD/CDS para se esquivar à acusação de controlo da televisão pública, transferindo a acusação para um conselho geral independente (CGI) com personalidades da sociedade civil. E que personalidades inesperadas! Seria bom de mais, se fosse verdade.

Compete ao CGI (1) nomear/demitir os gestores executivos e (2) a responsabilidade do dossier polémico do serviço público de televisão e rádio, bem como (3) a elaboração do projecto estratégico, que definirá as bases da gestão da empresa, assegurando (4) a supervisão e fiscalização do conselho de administração (CA) e também (5) a independência da RTP – mas não se diz como – relativamente aos interesses sectoriais e ao poder político.

E, no entanto, os estatutos ressalvam que o CGI “não tem poderes de gestão sobre a actividade” da RTP, cabendo ao CA o exercício do poder executivo, designadamente a execução do projecto estratégico do CGI, o cumprimento das leis da rádio e da televisão e também do novo contrato de concessão (que negoceia com governo, sem interferência do CGI, pelo menos para já). É o CA que organiza a estrutura da empresa e o modelo técnico de gestão, depois de submeter ao CGI o plano e os critérios adequados. Mas a gestão corrente fica sujeita a uma espécie de liberdade condicionada, uma vez que o gestor do pelouro financeiro depende do Ministério das Finanças, a quem presta contas.

É clara a sobreposição de competências. Para começar: de que vale ao CGI o poder de definir o plano estratégico, se não é tido nem achado para a discussão do contrato de concessão, que o condiciona drasticamente? Vai o CGI sujeitar-se a este espartilho e assinar de cruz ou tentará preservar o seu projecto estratégico, que é suposto envolver um conceito cívico de televisão, de rádio e de conteúdos multimédia, ao serviço do bem comum? Apostado no subfinanciamento da empresa, pode bem o Governo acenar com a bandeira do CGI e do seu projecto estratégico, sabendo de antemão que não há estratégia eficaz sem recursos adequados, ou seja, que o patrão dos meios acaba por comandar a estratégia.

De futuro, quando os administradores forem escolhidos pelo CGI, não seria impossível a cooperação leal do CA. Mas no período crítico de implantação, o CGI vai ter de se  confrontar com o CA instalado pelo Governo estabelecido e para cumprir um contrato de concessão estabelecido. Ninguém imagina um CA dócil como um verbo-de-encher perante um CGI todo-poderoso mas sem meios de acção. Num eventual entrechoque de competências sobrepostas, não se vê como pode o CGI impor-se ao CA. De um lado, temos um grupo prestigiado de personalidades, sem ordenado nem tempo para trabalhar, quase todos com provas dadas nos seus sectores de actividade, mas o busílis é que não conhecem o sistema televisivo nem os meandros e ratonices da RTP. Do outro, uma equipa de tecnocratas, respaldada em objectivos comercialistas (tão do agrado do Governo) e trabalhando a tempo inteiro para defender o perfil pessoal e a sua carreira. Como é que se evita o choque entre a panela de ferro e a panela de barro?

Sem experiência do ramo, sem independência funcional e sem meios operativos, o CGI não tem as condições sine qua non de eficácia, arriscando-se a ser apontado como o bode expiatório de todos os males da RTP – com a agravante de induzir contradições na governança da empresa, que poderão desculpabilizar os erros da gestão. Afinal quem manda em quê? Se o CGI tiver de confrontar o CA, exigindo-lhe informação do que se passa na RTP, quem garante aos supervisores a competência técnica para avaliar os dados fornecidos ou a sua eventual ocultação? Outra debilidade dos supervisores é a sua fraca disponibilidade efectiva (sem permanência na empresa, apenas comprometidos a uma reunião mensal, compensada com meras senhas de presença). Nem ao menos se prevê uma dotação financeira para encomendar estudos e pareceres. Nem tempo nem vencimento nem recursos financeiros – questões que foram generosamente resolvidas no caso da ERC.

A menos que os poderes estatutários dos supervisores sejam meramente formais (e então seriam um embuste), o que é que se pode esperar desta nova forma de tutela? Além de depender do CGI, a RTP presta contas à Assembleia da República, à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, ao Governo em geral e ao Ministério das Finanças em particular, além de responder perante o Conselho de Opinião e os dois provedores dos Telespectadores e dos Ouvintes, sem esquecer o Conselho de Redacção e a Comissão de Trabalhadores e ainda os outros meios de comunicação, mais a concorrência, mais as redes sociais, mais os grupos de cidadãos. São tutelas sobre tutelas, que se sobrepõem como as camadas de uma cebola. Alguém aguenta isto? Não seria altura de deslindar este novelo de tutores que se atropelam uns aos outros e que não têm servido para nada?

Até agora ninguém foi capaz de evitar que a direcção da RTP se mantenha impune na ignorância do serviço público. Em vez de uma informação esclarecida, o canal 1 é contaminado por uma visão comercialista da informação e dos programas, que remete para um canal pago a maior parte do conteúdo informativo. Em vez de uma programação decente, com relevo para a produção nacional, própria e/ou independente, os dirigentes da RTP presenteiam-nos com telenovelas, concursos e outras baboseiras baratas, que invadem o primetime e não travam a queda de audiências. Será que o CGI vai ser o primeiro órgão de tutela a acertar naquilo em que todos os outros falharam? Podia ser, caso o CGI tivesse sido bem desenhado. Seria preciso refundar a RTP, no sentido de a tornar capaz de uma programação popular de qualidade, nos domínios da televisão, dos multimédia e da rádio. Mas o que os burocratas de ocasião fazem descaradamente não é racionalizar a RTP, é desarticular a empresa aos bocados, tornando-a inoperante, em benefício do outsourcing e dos negócios privados. Há situações flagrantes de gestão danosa. Entregaram a área da Produção de Programas a Eduardo Moniz, um concorrente declarado, que ali se instalou, sem precisar de levar nem armas nem bagagens. Desmembraram a direcção técnica, a culminar na destruição da manutenção, que era dotada de técnicos da mais alta competência não poupando sequer os especialistas da manutenção óptica das câmaras. Sem orçamento aprovado, sem ideias e sem dinheiro, a administração não sabe o que fazer. De alto a baixo, reina o improviso e o salve-se quem puder, a ponto de já ninguém saber a quem pedir responsabilidades.

Perante o descalabro e o nonsense, quem acredita neste pacote de leis atabalhoadas que nalguns aspectos até deslizam da lógica do Governo? Ressalve-se a abertura do ministro Maduro, uma “avis rara” num galinheiro banal (mas quem o mandou meter-se lá?) sonhando com a honorável BBC. Em suma, o seu CGI era uma ideia generosa, que nasceu fora de contexto, por culpa de um Governo em descrédito. E agora, com estes estatutos bicéfalos, a RTP assemelha-se cada vez mais a um camião louco com dois motoristas ao volante.

Avelino Rodrigues – “Público” 07 setembro 2014

 

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