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100 anos (Manuel Loff)

3 de Março de 2021


Há partidos que, não sendo nunca apenas ação política no presente, nem apenas história, são muito imbricadamente as duas coisas. É o caso do PCP.

Começa pela sua originalidade fundadora: ao contrário de quase todos os partidos comunistas, nasceu não como uma cisão do Partido Socialista mas entre a militância sindicalista revolucionária. Cinco anos depois mergulhou na clandestinidade que a ditadura lhe impôs.

Se houve partido que melhor assegurou condições para que em Portugal se resistisse à ditadura foi o PCP. Outras organizações e atores políticos fizeram-no sobretudo em conjunturas específicas: os anarquistas no 18 de Janeiro de 1934 ou no atentado contra Salazar (1937), os republicanos ao longo dos anos do reviralho (1927-31) e, depois, nas eleições de 1949, 1951 e 1958; o movimento de libertação de Goa desde 1946, os das colónias africanas desde 1961; os maoístas, a esquerda armada, os socialistas e os católicos progressistas nos últimos anos antes do 25 de Abril. Os comunistas, esses, asseguraram a continuidade da resistência desde, pelo menos, a Guerra de Espanha (1936), no Tarrafal, nas greves de 1941-44, em todos os movimentos de unidade democrática desde 1943 (MUNAF, MUD, campanhas de Norton de Matos e de Delgado, os congressos republicanos, as CDE); foram os únicos que estavam nos campos alentejanos, e nas fábricas, e nos barcos de pesca, e nas escolas e universidades, que estiveram no exílio mas sobretudo aguentaram na clandestinidade.

Chegados ao 25 de Abril, ninguém (salvo os militantes africanos) tinha pago um preço humano tão elevado que eles pagaram. É histórica e moralmente inaceitável que se desvalorize a longa luta dos comunistas portugueses pela liberdade com argumentos como a Coreia do Norte ou os crimes do estalinismo — sobretudo quando, quem o nega, ou nada fez pela liberdade sob a ditadura, ou é herdeiro de quem nada fez. O PCP chegou ao 25 de Abril com um programa claramente definido nove anos antes, em 1965. Quem repete há quase meio século que os comunistas portugueses queriam implantar uma ditadura “de tipo soviético”, era bom recordar que, dos oito objetivos fixados para a “revolução democrática e nacional” que o PCP preconizava para Portugal, cinco foram adotados no programa do PS de 1973; onde não havia coincidência, o do PS parecia mais radical. Da “destruição do estado fascista e instauração de um regime democrático” ao “reconhecimento aos povos das colónias o direito à imediata independência”, à Reforma Agrária ou à “liquidação do poder dos monopólios”, os comunistas conseguiram atingir quase todos os seus objetivos porque a grande maioria do povo assim o quis nas eleições de 1975, e porque uma amplíssima maioria de 93% dos deputados constituintes, incluídos os do PS e do PPD, aprovaram uma Constituição que consagrou esses objetivos. Depois das tensões do período revolucionário, empenhado em lutas sociais por todo o país, abertamente perseguido no Norte, no Centro e nas ilhas, ameaçado de ilegalização por alguns dos vencedores do 25 de Novembro, o PCP soube participar desse amplo consenso constitucional, o mesmo que há tantos anos se tende a omitir, como se ele não tivesse dado forma legal à democracia portuguesa em tudo quanto de original ela (ainda hoje) tem.

Marcados pela contrarrevolução, desde 1976 que os comunistas lutaram com êxito por assumir a diferença no poder local, onde foram e são protagonistas de uma gestão reconhecidamente honesta que trouxe bem estar e dignidade aos subúrbios mais degradados e à miséria do interior ribatejano e alentejano — mas nunca assumiram cargo nenhum no Governo. Quem entra para o PCP sabe ao que vai: enquanto nele militar, o exercício do poder não é de todo provável. Isso não impediu que, tendo resistido muito melhor que os seus congéneres à crise do movimento comu- nista, o PCP não tenha hesitado em convergências que pareciam improváveis, e que em todos os casos lhe fizeram perder apoios: a reeleição de Eanes (1980), a eleição de Soares (1986) ou as de Sampaio (Câmara de Lisboa, 1989, presidência da República, 1996). Em 2015, na viabilização do Governo de Costa.

Nenhuma caricatura do PCP estalinista e ortodoxo aguenta semelhante percurso. Não é por acaso que se faz 100 anos e se está presente na nossa história coletiva.

Manuel Loff – “Público” 2 março 2021

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