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Duas gerações (Nuno Santa Clara)

12 de Agosto de 2020


Ao fim de décadas de avanços e recuos, de promessas e esquecimentos, foi aprovado na Assembleia da República o Estatuto do Combatente.
Record batido: o Código dos Inválidos de Guerra foi publicado em 1927, nove anos depois do fim da I Guerra Mundial. Ou seja, o agora aprovado Estatuto demorou seis vezes mais tempo a ser publicado, isto em plena Era da Informação…

Já deveríamos estar habituados a estes compassos de espera, mas duas gerações de atraso é bem pior que meia geração, como aconteceu com o Código dos Inválidos.

Alguma razão há-de haver, e nada melhor do que analisar os comunicados oficiais para tentar encontrar um motivo para esta dilação.

Também se poderia analisar o próprio texto legal, mas duas dificuldades se nos deparam: a aplicação do Estatuto será inevitavelmente objeto de muitas interpretações e demandas jurídicas; e, em todas as leis, o preâmbulo refere sempre a defesa dos fracos, dos oprimidos, dos deserdados da sorte, o que nem sempre se reflete no articulado que se segue.

Fiquemo-nos, portanto, pelas intenções.

Segundo o texto divulgado pelo MDN, consagrou-se “um novo momento de reconhecimento aos militares que combateram ao serviço de Portugal, assente na dignificação, solidariedade e valorização destes militares e das suas famílias”.

Nada mais certo, e devem ser sublinhados três conceitos:

“Combateram ao serviço de Portugal”, ou seja, não o fizeram em defesa de qualquer regime político ou governo específico;
“Dignificação, solidariedade e valorização”, ao arrepio das tentativas de esquecimento e desvalorização do que foi a Guerra Colonial;
“Das suas famílias”, as eternas esquecidas, dos ausentes, falecidos ou incapacitados, sobre cujas famílias caíu o ónus da recuperação, integração e até sobrevivência, que o Estado prometeu, mas nunca cumpriu como devia.

A tónica da dignificação é novamente invocada no texto como o “sublinhar o lugar digno dos Combatentes na nossa História, através da sua inscrição como Titulares do Reconhecimento da Nação”.

Decerto que não pode deixar de ser louvada a atribuição de “diversos novos benefícios”, mas a questão do reconhecimento deve ser considerada como o conceito fundamental do Estatuto agora aprovado.

Aos que fazem as contas apenas pelos benefícios fiscais e financeiros, esta questão pode parecer de menor importância.

Mas não deve ser considerada assim.

Talvez a palavra mais importante deste texto tenha escapado a muita gente. É uma palavra que surge um tanto ao correr da pena (melhor dizendo, do teclado), numa frase que se transcreve sobre a proposta do Governo: “é… um momento de reconciliação, o Estatuto é lugar de solidariedade para com os combatentes que mais precisam”.

De solidariedade já se falou, mas a palavra “reconciliação” tem um peso enorme no modo de encarar a nossa vivência e a nossa História.

É (esperemos) o fim do esquecimento induzido, do “varrer para debaixo do tapete”, da “não inscrição” de que falava Agostinho da Silva. É aprender a viver com todos os parâmetros da nossa sociedade. É perceber que, em certas guerras, não há vencedores nem vencidos: só há vítimas.

Umas linhas sobre o repatriamento dos nossos mortos. Já existiam cemitérios militares em África, desde os tempos da I Guerra Mundial. Alguns, como o de Mueda, receberam novos ocupantes. Se há cem anos era impensável o repatriamento dos mortos, hoje isso torna-se possível.

Mas não é uma questão simples. Tomando com exemplo os americanos, os seus militares da II Guerra Mundial estão sepultados na Europa perto dos locais de batalha. Inclusive o célebre general Patton repousa num cemitério do Luxemburgo. Era uma forma de dar significado às suas mortes. Mas, nas Guerras da Coreia e do Vietname, tiveram o cuidado de repatriar os mortos. Talvez porque era difícil explicar às famílias que os seus entes queridos estavam sepultados numa terra que, antes de começar a guerra, nem saberiam indicar num mapa onde ficava.

Não é, decerto, o nosso caso, mas a decisão final é das famílias.

O conhecimento deste Estatuto pode levar a situações curiosas, ao sabor das conversas familiares. Como o adolescente que pergunta ao Antigo Combatente: Avô, o que foi isso da Guerra Colonial?

Resposta difícil, duas gerações depois do último tiro.

Por isso é de salientar outra frase tirada do texto: “uma homenagem que consiste num dever de todas as gerações”.

Nuno Santa Clara – (“ELO” – Jornal da ADFA)

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