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Lei & Ordem (Nuno Santa Clara)

3 de Agosto de 2020


Das pomposas declarações de políticos aos retumbantes comícios, dos filmes à banda desenhada, dos governantes aos governados, o apelo à Lei e à Ordem é uma constante no panorama de Além-Atlântico.

Com algumas variações. Uns preferem Lei & Ordem; outros Ordem & Lei. E o que se diz em a Economia não coincide com o que se diz na Política, uma vez que pouca Lei é bom para os negócios, mas mau para reprimir os contestatários – o que quer que isso seja.

O intervalo entre as duas Guerras Mundiais foi, na Europa, uma época de pouca Ordem, e primado da Lei, neste caso a lei do mais forte, através de governos não democráticos. Lembremos que, na Europa de antes de 1945, na maioria dos países não se vivia em Democracia. E mais: o modo de atingir o Poder era, em regra, a revolução ou o golpe de estado; e a falta de Ordem era o motivo invocado para estabelecer a dita Ordem através de medidas repressivas. Entre nós, basta lembrar a I República e o 28 de Maio, e o que se seguiu.

O caso alemão é talvez o mais típico: militantes de esquerda e unidades das SA (Sturmabteilung, ou tropas de assalto, na tradução corrente) enfrentavam-se por todo o lado, levando as pessoas pacatas a sonhar com segurança nas ruas. Dada a recordação da Revolução Soviética e das tentativas revolucionárias na Alemanha, logo após o fim da guerra, simpatia correu para o lado dos nazis, até nos mais elevados escalões da governação. Claro que, uma vez no poder, as SA integraram as “forças da ordem” e dominaram o aparelho policial, neutralizando o adversário da forma que se sabe.

Os distúrbios iniciados nos Estados Unidos com a morte de George Floyd às mãos da Polícia de Minneapolis, que ainda não tiveram fim, e cujas consequências ainda se está para ver, deram aos defensores da Ordem & Lei uma boa oportunidade. Com o Presidente à cabeça, vá de lançar uma cruzada para a reposição da “segurança nas ruas”, para a “proteção do património público” e para a “proteção das instituições do Estado”.

Só que os Estados Unidos são uma Federação, e os diferentes Estados têm competências e meios próprios, só se recorrendo ao Governo Federal em casos extremos. E os Estados são ciosos das suas autonomias.

Recordemos que a Guerra Civil Americana começou por o governo de Abaham Lincoln ter decretado o fim da escravatura, contrariando os Estados do Sul (dependentes disso para o cultivo de algodão). O conflito de competências levou à sessessão, e à guerra mais mortífera da História dos EUA.

Donald Trump é useiro e vezeiro em discriminar Estados e cidades do partido contrário. Mesmo em questões tão evidentes como o Coronavírus, prevalecem os seus Tweets, acompanhados por decretos e ordens administrativas que são um bico de obra para os seus colaboradores, mas que, felizmente, muitas acabam por não ter efeito prático, ou mesmo jurídico.

Os distúrbios caíram do céu para um Presidente em baixa de popularidade. Nada melhor que mostrar mão forte, tendo sido o primeiro gesto mandar escorraçar, por meios musculados, os manifestantes dos arredores da igreja de St. John´s, perto da Casa Branca; depois exibiu uma Bíblia, como que Última Razão dos seus atos. Deveria ser mesmo uma Bíblia, embora durante a exibição só mostasse às câmaras a contracapa; mas, como o único verdadeiramente interessado era ele, a posição do Livro estava correta.

Temos agora um arremedo de operação militar, com o envio de elementos federais para repor a Lei & Ordem em Portland, quando nem o Governador do Estado, nem o Mayor da cidade o tinham pedido. A questão saldou-se por muitos confrontos, muita publicidade, e uma a saida de cena não muito airosa das forças federais. Que depois foram prometidas para outros “teatros de operações”, Cleveland, Detroit e Milwaukee, que também não tinham solicitado apoio federal.

Ao que parece, a cartada da Lei & Ordem não correu pelo melhor, e as ameaças externas parecem também pouco mobilizadoras para garantir uma reeleição.

Restam as eleições em si. Já tinha sido difundido que, caso perdesse as eleições, o atual Presidente não aceitaria os resultados. Mas agora a jogada é diferente. Donald Trump pôs em causa o voto por internet (que não questionou quando foi eleito) por passível de fraude; assim sendo, propôs o adiamento das eleições. Ao que parece, nem no seu próprio partido a ideia é bem aceite.

Mas, finalmente, temos uma demonstração de estratégia indireta bem concebida. Se não, vejamos: Se perder as eleições, foi devido a fraude; A fraude tinha sido anunciada, mas o adiamento não foi atendido; Logo, as eleições não são válidas; Razão tinha ele quando disse que não as aceitaria se os resultados fossem desfavoráveis.

Talvez não seja uma jogada de mestre no xadrês político, mas como esperteza saloia, é do melhor. Com o apoio de cerca de 45% dos eleitores.

A bem da Lei e da Ordem.

Nuno Santa Clara – 03 agosto 2020

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