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Letras miudinhas (Nuno Santa Clara)

20 de Julho de 2020


Todos somos vítimas das letras miudinhas, ou seja, daquelas que ocupam páginas inteiras dos contratos de seguro, dos bilhetes de avião, de contratos de água e luz, etc., etc. Ou de negócios mais importantes, em que a importância das letras miudinhas só se revela quando as coisas dão para o torto, ou seja, tarde demais.

O caso “letras miudinhas” é típico de uma sociedade com excesso de informação. Ninguém tem tempo para esmiuçar um seguro, um arrendamento ou a compra de um imóvel, ou um simples contrato de fornecimento de água ou energia, lendo linha por linha as inúmeras cláusulas que penalizam, em regra, quem aceita e assina o contrato. Parte-se do princípio de que, antes dele, outros o leram, analisaram e aprovaram; que os ditos contratatos foram vistos à face da Lei, e declarados conformes; ou que, no mínimo, se torna inútil esmiuçar, já que não há alternativa, e de outra forma não se poderia viajar, arrendar casa, ou ter água ou eletricidade em casa.

Mas há outros contratos, dos quais o mais conhecido é o “Contrato Social”, conceito surgido no “século da luzes”, como forma de explicar a sociedade dos Homens.

Segundo esse “Contrato Social”, os bens são protegidos e as pessoas, unindo-se a outras, obedecem a si mesmas, conservando a liberdade. O pacto social pode ser definido quando “cada um de nós coloca sua pessoa e sua potência sob a direção suprema da vontade geral”.

Rousseau, na sua obra chamada precisamente “Contrato Social”, disse que a liberdade é inerente à lei livremente aceite. “Seguir o impulso de alguém é escravidão, mas obedecer uma lei auto-imposta é liberdade”. Considerava a liberdade um direito e um dever, em simultâneo. A liberdade pertence aos homens e renunciar a ela é renunciar à própria qualidade de homem.

Este é o princípio das atuais Constituições dos Estados: o estabelecimento de uma Lei Fundamental, referendada por sufrágio universal, que é a referência para todas as outras leis, que com ela têm de estar conforme.
Só que, no dia-a-dia das sociedades modernas, submersas por toneladas de leis, decretos e regulamentos, temos a tendência de relegar para o estatuto de “letras miudinhas” os textos fundamentais.

Situação que agrada em pleno a alguns grandes decisores, políticos populistas, comentaristas mal formados e advogados chicaneiros.
Adolf Hitler, depois da tomada do poder, nem se deu ao trabalho de forjar uma nova constituição: instituiu o “füherprinzip”, o princípio do Chefe, que tem sempre razão – por definição, e sem necessidade de justificação ou base legal.

Outras formas há de contornar o texto fundamental. Na Constituição Portuguesa de 1933, o seu art. 8.º, n.º 4, dava como garantida “a liberdade de expressão de pensamento sob qualquer forma”; mas no § 2.º do n.º 20.º do mesmo artigo, explicitava que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento…” Regularão: remetia-se para um futuro incerto uma garantia constitucional. O resto da história conhecemos nós.

Este prurido legalista de Salazar contrasta com alguns políticos atuais, que se podem dividir em duas categorias.

Uns remetem as constituições para as letras miudinhas, por incómodas.
Outros nunca as leram (aquilo está cheio de palavras difíceis ou desconhecidas), embora tivessem solenemente jurado defendê-las até ao último suspiro.

Todos eles têm seguidores incondicionais, partilhando tanto a falta de princípios como a ignorância (muitas vezes acumulam).

De modo que, como forma de aliviar o espírito em tempos de pandemia e confinamento, propomos uma atividade lúdica: fazer uma lista dos mais conhecidos líderes populistas, e tentar classificá-los nas categorias acima descritas.

Não devem ser incluidos Donald Trump e Jair Bolsonaro, uma vez que a resposta é imediata, contrariando o espírito do jogo.

Bom trabalho!

Nuno Santa Clara

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