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As máscaras do nosso confinamento (Avelino Rodrigues)

28 de Maio de 2020


As máscaras do nosso confinamento 

(sobre um texto de Guilherme Valente)

Não me surpreendeu o teu artigo sobre o combate ao coronavírus no Oriente, sabendo como sei da tua admiração pela sabedoria chinesa. A ser como dizes, as máscaras terão salvado Hong Kong do coronavírus, sem ser preciso recorrer a estas medidas de emergência que tanto sacrificam o nosso país. O teu prolongado périplo oriental deu-te especial sensibilidade para as questões sínicas. Também eu estive dez anos em Macau, tempo muito curto para se conseguir aprender alguma coisa da China.  Tive no entanto a sorte de conviver, no meu gabinete da TDM, com um ex-funcionário do círculo restrito  de Mao Zedong – o Gary Ngai que acabava de chegar a Macau em 1982, liberto dum campo de concentração na Manchúria. Desse convívio retive que muito do que se  passa na China moderna traz a marca daquela civilização milenar, incluindo a Revolução Comunista, ainda que esta tenha provocado a maior ruptura civilizacional da história chinesa, mais incisiva que a precedente rebelião dos Taiping (1850-64) e que a implantação da República de Sun Yatsen (1911) que derrubou o Império.

O Ngai tinha sido tradutor e intérprete de grandes líderes da Revolução Comunista Chinesa (em especial Zhou Enlai e, ao que se dizia, o próprio Mao). Ultimamente tinha trabalhado de perto com Yao Bang, secretário-geral do PCC, que desde sempre fora parceiro de Deng Xiao Ping no “novo rumo para o socialismo de modelo chinês”, após a morte de Mao em 1976. O período anterior fora muito conturbado. A Revolução Cultural (1966-1976) ultrapassa o próprio Mao, seu criador, e cai nas mãos do Bando dos Quatro, que leva ao rubro a grande purga da corrente pragmatista de Deng Xiao Ping enraizada na linha de Zhou Enlai e Liu Shaoqi . Nesta voragem, todos os seus seguidores e colaboradores — identificados pela Guarda Vermelha como traidores,  revionistas ou intelectuais reaccionários — são eliminados ou sujeitos à reeducação popular. Foi o que aconteceu ao nosso Ngai, um homem culto que falava doze línguas e gozava da confiança dos lideres em desgraça – estava mesmo talhado para ir plantar batatas (no caso, batata-doce) num campo de trabalhos forçados.

Após a morte de Mao cai o Bando dos Quatro. Sem ninguém dar por isso, Deng emerge e vai-se firmando no aparelho do Partido, até recuperar o seu cargo de Secretário-Geral do PCC em 1978. Os campos de reeducação são desmantelados, e os perseguidos da Revolução Cultural são libertados discretamente. A Gary e a alguns outros é-lhes dada fuga para Macau, sob custódia da Agência Xinuá  (ou Nova China) que, como se sabe, era uma delegação camuflada do Governo Chinês para o controlo de Macau durante a administração portuguesa. Era o tempo da consolidação de Deng Xiao Ping, novo líder da revolução chinesa, promovendo os reformistas a posições de comando, entre os quais o seu braço-direito, Yao Bang, que ele fez secretário-geral do PCC. O ano de 1981 é marcado pelo sucesso da política agrária e pelo avanço dos projectos de modernização, levando à prática o método do consenso/compromisso/persuasão, que esquece a luta de classes e inaugura o princípio de “um país, dois sistemas” (no plano interno) e da coexistência socialismo/capitalismo no plano internacional. Por essa altura, os ingénuos cartazes de propaganda denguista vendiam-se em massa nos mercados dos Zuhai, onde adquiri um exemplar que ainda conservo, ali mesmo ao lado de Macau. (ver anexo). Deng criava um lugar para si entre os seis magníficos da Revolução, aparecendo como continuador de Mao, que de facto havia suplantado.

(Faço aqui um parênteses só para observar que muita gente se escandalizou com o desvio ideológico dd Deng Xiaoping, esquecendo  os  antedentes análogos e quase simultâneos da “Ostpolitik” de Willy Brandt e do “Compromisso Historico” de Aldo Moro/Berlinguer).

Quando conheci o Gary em 1982, ele falava com muita cautela, desconfiado, pesando as palavras, sempre com muitas reticências. Achei normal essa insegurança, mas alguns portugueses de Macau, conhecendo-o mal, torciam o nariz. Dizia-me que não falava Português, mas um dia surpreendi-o a folhear o meu  “Expresso”. Outra vez, numa viagem que fizemos a Cantão, deixou cair a pasta ao chão e saíu de lá uma gramática portuguesa. Ficava sempre muito atrapalhado. Notoriamente andava a estudar português às escondidas (porquê? mas eu compreendi que um chinês refugiado político, dentro do próprio país, tivesse de preservar os seus segredos. Com o tempo, começou a contar-me alguma coisa da China e da Revolução maoista, que mais aguçaram a minha curiosidade, porque eram coisas que eu não conhecia dos livros. Um dia propus-lhe um negócio: eu ensinava-lhe Português, e ele ensinava-me Chinês. Antes de responder-me, quis saber por que razão estava tão interessado na língua chinesa. Falei-lhe do meu jeito para línguas e do desejo de ler a filosofia chinesa e a poesia.

–Também eu – disse ele, para meu espanto – mas… quantos anos vai ficar em Macau?

— Dois anos talvez – respondi, enquanto ele coçava a cabeça

— Olhe, meu amigo, dois anos não deve chegar, é que eu ando a estudar mandarim há quarenta anos, e só domino uns treze mil caracteres, vou ver se consigo os quinze mil, mas acima disso só alguns letrados. 

— Mas quem é capaz de ler tantos sinais?

— O Mao, sim, o Mao dominava mais de vinte mil caracteres, até lia os filósofos antigos e a poesia.

Falava com tal simplicidade que não fiquei humilhado. Mas arrumei de vez a minha ideia de penetrar na sabedoria chinesa. Quando finalmente lhe ganhei a confiança, contou-me coisas que eu nunca tinha ouvido do processo revolucionário chinês, sobretudo da Revolução Cultural. Fiquei fascinado e desafiei-o a escrever um livro que teria sucesso garantido no Ocidente, eu próprio lhe arranjaria editor. Recusou polidamente, mas decidido: por mais que reconhecesse as contradições do comunismo chinês e sofrido com elas, nunca – jurava ele – escreveria um livro que pudesse ser aproveitado pelos inimigos da China ou que desfigurasse a imagem de Mao Zedong. E explicava: a China era a sua mãe-pátria, e Mao ficará para sempre na História, admirado pelo povo chinês, mesmo pelos anticomunistas, por ter salvado a China das três grandes pragas milenares – a fome, o analfabetismo e as epidemias – que desde sempre haviam travado a grandeza do Império do Meio. Um patriota.

E é aqui que a minha história se cruza com a questão das máscaras de Hong Kong. Pelas conversas com o Gary, fiquei a saber que as epidemias fazem  parte da memória colectiva do povo chinês e dos seus medos ancestrais. Agora já se sabe que, após Mao, afinal as pragas sanitárias voltaram a assolar a China, inclusive as primeiras ondas de coronavírus. Mas antes do coronavírus, a China pós-maoista teve de enfrentar uma “epidemia” moderna de outro tipo, a poluição industrial, resultante de um modelo antiquado de desenvolvimento industrial, que torna irrespirável o ar das megacidades. Incapaz durante muitos anos de modernizar uma indústria altamente consumidora de combustíveis fósseis (que aliás já tinha contribuído para o fracasso de Mao no “Grande Salto em Frente” de 1961-65) o Governo chinês não tinha outro remédio senão a produção de máscaras respiratórias, para que as grandes multidões pudessem resistir à poluição. E acrescente-se que, em largos períodos do ano, o problema é agravado pelas altas pressões atmosféricas de um clima quente e húmido.

Já nos anos 60 do século passado, a prática das máscaras respiratórias tinha feito sucesso no Japão, quando uma industrialização antiquada culminava na destruição da  biologia marítima e de todo o meio ambiente, enquanto os japoneses ingenuamente proclamavam “bem-vinda poluição que nos traz tanta riqueza”. Do Japão e da China, o modelo espalhou-se por todo o Oriente, impulsionado por análogas razões desenvolvimentistas que punham em risco as “overcrowded” concentrações populacionais. Rapidamente aquilo que era uma medida sanitária transformou-se em moda, primeiro no Japão, depois no subcontinente chinês. Nada disto tem a ver com o coronavírus, foi tudo muito antes, um resultado da poluição industrial.

As imagens que há décadas se vêem nas nossas televisões, vindas de Pequim, de Xangai e das grandes cidades do interior, sem falar das manifestações recentes dos estudantes de HKong (e não é só para resistir aos gazes da polícia) revelam a existência de uma máquina de produção em massa de máscaras anti-poluição. Tudo indica que esta velha prática tecnológica tenha sido aproveitada para tentar suster uma nova epidemia respiratória, o coronavírus, que teve dois grandes surtos em 2002 e 2012 e de que se registaram sete estirpes, pelo menos. Entretanto, chegado o violento surto  do covid-19 no final do ano passado, em Wuhan, a China já teria modernizado a sua estrutura tecnológica, adequando-a à necessidade de produzir máscaras anti-virus para a sua imensa população e para os países vizinhos. Daí até ao mercado mundial é só um pulo de dragão.  

Aonde é que eu já vou, santo Deus, na minha circum-navegação? Pelo pouco que sei do Oriente, quis lembrar que o mito chinês percorre a história de Portugal e da Europa e amplia os efeitos de tudo o que vem da China nas circunstâncias actuais. As máscaras de Hong Kong não são de Hong Kong, mas da China mítica e empreendedora, mascarando imagens do passado com os medos do presente. Por isso é que lembrei que, num primeiro tempo, o uso massivo de máscaras ultrapassa a necessidade respiratória, sendo potenciado por um certo mimetismo cultural da maioria dos países asiáticos, tradicionalmente subalternos do prestígio chinês e admiradores do Japão moderno. Quando o vírus invade o mundo globalizado, as imagens e os medos alastram também (mas isso já é sabido). Reavivo uma evidência: as máscaras não curam a doença, nem são uma alternativa ao confinamento, nem na China nem em Portugal. Também não são um antídoto ou uma moda. São isto tudo e coisa nenhuma. Faz parte da ciência duvidar de si mesma, mas a ciência é que nos pode salvar.            

Avelino Rodrigues – Maio 2020

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