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Contra o “jornalismo de matilha”

19 de Agosto de 2010


Vai-se assistindo cada vez mais ao fenómeno do chamado “jornalismo de matilha” (pack journalism) na sociedade portuguesa. Os acontecimentos seleccionados como notícias são alvo de uma cobertura maciça por parte dos vários e distintos meios de comunicação social. Os jornalistas, em bando (ou seja, em matilha…) juntam-se nos mesmos sítios, às mesmas horas e para os mesmos acontecimentos marcados pelas mesmas agendas oficiais, entrevistam as mesmas pessoas e destacam os mesmos assuntos.
Sem espírito crítico, sem um olhar próprio, copiam-se uns aos outros e escolhem o mesmo ângulo das notícias. Não é mesmo raro que as combinem. “Vais puxar por onde? Qual é o lead por que optaste?”, perguntam uns aos outros, seja na Assembleia da República onde terminou uma audiência parlamentar, seja no tribunal, a seguir a um julgamento, ou num qualquer ministério, após uma qualquer conferência de imprensa.

É uma falsa concorrência esta. A principal preocupação é dar mais depressa e não de forma diferente. Aliás, torna-se mesmo difícil contrariar esse espírito de “matilha”, face à frequente resistência e desconfiança por parte das chefias, nada sensíveis a qualquer sugestão de se dar relevo a uma perspectiva diferente da que os outros media escolheram e já difundiram antes. O resultado é um produto final idêntico e uniforme para consumo de leitores de jornais, telespectadores e ouvintes de rádio.

Daí a prática frequente de “se copiarem” as versões de quem cabe noticiar os acontecimentos imediatamente ou em directo: a agência de notícias Lusa e as rádios e as televisões.

Nesta “correria” imposta pelo imediatismo e pela tirania do tempo, não se perde apenas a originalidade e o espírito crítico. Vão-se atropelando as mais elementares regras éticas e deontológicas do jornalismo. Na pressa de se noticiar – e de se noticiar primeiro -, não se confirmam as informações recolhidas quantas vezes por-espírito-santo-de-orelha, não se aprofunda, não se ouvem todas as partes envolvidas. Todos os dias se divulgam notícias falsas ou incompletas que, com uma velocidade espantosa, ganham crédito e influenciam a opinião pública. Criam-se convicções baseadas em mentiras por via desta prática generalizada hoje na imprensa portuguesa. É uma dinâmica perigosa e gravíssima. Perigosa, porque os jornalistas, com o poder de assegurarem os direitos constitucionalmente consagrados de informar e de ser informado, tornam-se eles próprios instrumentos de interesses e de poderes estabelecidos. Grave, porque durante a correria, a “matilha” arrasta o bom nome das pessoas para a lama, não respeita a presunção da inocência e, sobretudo, não noticia a verdade. Diz-se que a verdade é relativa. Mas também se sabe – ou devia saber-se… – que o que um jornalista noticia é o que ele filtra através dos “óculos” com que constrói a realidade, como notava o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Existe, porém, um valor para lidar com essa subjectividade: a honestidade intelectual. Um jornalismo sério e honesto distingue a informação da propaganda e da contra-informação, respeita o direito ao bom nome e à reserva da vida privada alheia, não toma partido e ouve sempre as partes em causa (e em pé de igualdade, que só o exercício permanente da equidistância o permite).

É sem dúvida um exercício difícil lutar contra a tirania do tempo nestes tempos dominados pela velocidade com que circula a informação. Mas há que fazer escolhas nesta guerra em que o jornalismo anda tão mal ferido pelo que aí se vai publicando em seu nome: ou se sobrevaloriza o sensacionalismo e a mentira, ou se opta por um jornalismo cívico e responsável.

Paula Torres de Carvalho, Jornalista – “Público” 14 Ago 2010

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7 Comentários »

  • Ana Miguel Lopes said:

    Foi com muito agrado que li o seu artigo. Permita-me concordar plenamente com os pontos que refere e louvar as suas palavras a favor de um jornalismo credível.
    É inacreditável como um país tão pequeno pode produzir tanto conteúdo informativo sem confirmação prévia dos factos. A criatividade usurpou o lugar da realidade e a linguagem clara, correcta e concisa deu lugar a títulos que não correspondem à notícia e/ou aos conteúdos apresentados.

    Como Jornalista (no desemprego, como a maioria dos meus colegas) sou muitas vezes questionada em relação ás notícias apresentadas nos Órgãos de Comunicação Social (OCS) e a minha resposta, na maioria das vezes, é: “Não acreditem em tudo o que lêem e ouvem! Pensem pela vossas cabeças se isto faz algum sentido.”
    O tipo de jornalismo que hoje é dado a “comer” ao povo equivale ao jornalismo de sensacionalismo, ao cor-de-rosa; se é chocante é porque é bom e não me conformo que à hora das refeições continuem a apresentar (na TV) imagens de corpos ensanguentados e sem membros. Não consigo compreender que já não basta dizer que aconteceu, é necessário apresentar imagens que comprovem sejam elas qual forem e as nossas crianças vêem e assimilam que é normal!

    Termino este comentário expressando o meu contentamento por não ser o único E.T. a pensar que algo de muito mau se passa no jornalismo em Portugal.

  • Edgar Canelas said:

    Parabéns pela lucidez da análise e sobretudo pela coragem em publicá-la.

  • Leituras | VAI E VEM said:

    […] Agosto 20, 2010 por Estrela Serrano A jornalista Paula Torres de Carvalho escreveu no Público um artigo que deixei passar mas ao qual cheguei via Clube de Jornalistas. Chama-se ‘Contra o […]

  • António Borga said:

    Parabéns Paula. O silêncio das novas e velhas «estrelas» da matilha é ensurdecedor

  • José Mário Costa said:

    É, “só”, o texto mais importante que se escreveu ultimamente sobre o estado da imprensa portuguesa. Já agora, aconselho igualmente a acompanhar-se a polémica à volta do estatuto de assistentes de jornalistas em processos judiciais, nomeadamente no “caso Freeport”. O último texto, da jornalista Fernanda Câncio, pode ser lido aqui: http://jugular.blogs.sapo.pt/2115928.html

  • Leal Cardoso said:

    Há já 30 anos que cortei relações com a Imprensa escrita e nem de graça (ou de borla)leio jornais. Tenho a pior das opiniões sobre a classe jornalística que considero inculta, mal formada profissional e socialmente, manipuladora (obedece cegamente à voz do dono)e, sobretudo, tendenciosa. Logo, nunca li o “Público” mas tenho acompanhado, através da Imprensa falada ou da Net, algumas polémicas protagonizadas por esse jornal que me levaram a considerá-lo um pasquim mais no universo dos nossos – muitos – pasquins. Foi, pois, com grande admiração e agrado que li este artigo da jornalista Paula Torres de Carvalho, que não conheço, mas a quem endereço desde já as minhas felicitações pela coragem de escrever o que escreveu e no jornal onde escreveu. Ela é, sem dúvida, uma das raras excepções à mediocridade
    reinante na sua profissão e teve o condão de me devolver alguma esperança na mudança de mentalidades dos seus pares.
    Obrigado por isso.

  • Um silêncio ensurdecedor | VAI E VEM said:

    […] quase toda uma “classe” (com a  excepção acima apontada e a exortação feita aqui), cuja credibilidade perante os cidadãos é a fonte da sua legitimidade. De facto, é nestes […]

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