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Curdos – um povo “dispensável” (Pezarat Correia)

15 de Outubro de 2019


Confesso que raramente, talvez nunca ao longo da minha vida, particularmente quando passei a ser um observador mais atento e interveniente na análise da conflitualidade internacional, me senti tão desconfortavelmente inquieto e perplexo perante a imprevisibilidade da conjuntura.

Porque há uma certeza que me perturba, a de que estamos à mercê de um idiota (no significado do indivíduo desprovido de ideias e de inteligência) que detém poder militar e económico capaz de destruir a humanidade e não revela um mínimo de credibilidade, de bom senso, de competência para enfrentar crises e tomar decisões. Situação agravada porque se sente acossado pela pressão das eleições e pela ameaça do impeachment. A imagem que faz questão de exibir é a de quem ignora e despreza os mais elementares métodos e regras que regulam os processos de tomada de decisão; que decide errática e casuisticamente influenciado pelo último telefonema ou encontro de corredor.

O exercício da sua presidência tem sido uma patética gincana de que é expressivo e último exemplo a recente retirada da Síria abrindo as portas ao massacre curdo pelos turcos. Claro que o problema não está na retirada de onde as tropas dos EUA nunca deviam ter entrado, mas na forma como o faz e como o anuncia, sem prevenir que se evitasse aquilo que todos adivinhavam que seria óbvio, o massacre dos seus aliados no combate ao DAESH a que chama “guerra ridícula”.
       O drama da Síria é muito complexo – já aqui o tenho o abordado várias vezes – e a verdade é que as culpas não são só dos EUA ou da Turquia. A UE e particularmente a França têm gravíssimas culpas no caos que ali se instalou. Depois da tragédia do Iraque com a invasão anglo-americana de 2003 que atraiu a Al Qaeda à região, que a França condenou e a Turquia não apoiou, Paris envolveu-se no desencadeamento da guerra civil na Síria, estado laico no Médio Oriente onde se verificava uma rara estabilidade, contribuindo para a instalação e crescimento do DAESH. Lembre-se que, no planeamento da invasão do Iraque, os EUA tinham anunciado que se seguiria a Síria e por fim o Irão, sendo o objetivo mudar o mosaico político regional. O que Washington não pôde fazer na Síria, dado o fracasso no Iraque, acabou por fazer Paris. Também a Turquia terá alguma razão pois, com uma extensa fronteira com a Síria, vê-se assolada com mais de três milhões de refugiados enquanto a UE, com mais responsabilidades na origem do drama, grita a quatro ventos que não aguenta a vaga migratória que, da Síria, não chega a um milhão.
      Evidentemente que neste último episódio da crise, a invasão turca, está a eterna questão curda e aqui, mais uma vez, há responsabilidades diretas de potências europeias no refluxo dos seus impérios coloniais. Quando repartiram o espólio do Império Otomano, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, Paris e Londres “esqueceram-se” dos 35 milhões de curdos que também aspiravam pela independência na sua terra. Na coluna “Jango” que mantenho em O Referencial, revista da Associação 25 de Abril, no n.º 122 de Jul-Set de 2016 escrevi sobre os acontecimentos de 15 de julho desse ano na Turquia: «Uma coisa parece certa e alguns sinais se têm revelado nesse sentido, é que os grandes sacrificados venham, mais uma vez, a ser os curdos.» (p. 137)
      Na mesma coluna, no n.º 127 de Out-Dez de 2017, o Curdistão mereceu-me uma análise mais detalhada e, a propósito, escrevi: «O posicionamento da comunidade internacional face ao Curdistão tem sido de grande ambiguidade e, muitas vezes, de comprometedor silêncio. É uma questão incómoda nos equilíbrios das alianças. Dos EUA, face à alteração do quadro regional e à imprevisibilidade de Donald Trump, é arriscado antecipar o que farão […] O Curdistão servir-lhes-á, sempre, como um peão a jogar oportunamente.» (pp. 96 e 97)
      Lamentavelmente, creio que não me enganava. E eis que se anuncia o ressurgimento do DAESH que, aliás, Erdogan considerou uma ameaça secundária. Para Ancara a prioridade foi sempre a “ameaça” curda.
      Provavelmente Trump terá dado mais um tiro no pé. Assad e Putin já o perceberam e já negoceiam com os curdos e não creio que, no tal mosaico regional, o Irão esteja distraído.

14 de Outubro de 2019

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