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Maioria absoluta (Pezarat Correia)

13 de Setembro de 2019


O país entrou em plena campanha eleitoral para as legislativas, a consulta mestra dos regimes em que vigora a democracia representativa. Num verão muito quente uma campanha fria. Talvez porque os dados parecem lançados, não se esperando surpresas nem disputas renhidas. Não se preveem alterações na detenção do poder, quando muito alguns ajustamentos na periferia partidária que influencia o poder. Os portugueses parecem acomodados à correlação de forças dominante.

Por outro lado, e não menos importante, os portugueses têm revelado alguma indiferença ao crescimento, por toda a União Europeia e também na América, de populismos xenófobos identificáveis com a extrema-direita. Ainda não é ameaça que lhes tire o sono apesar de alguns partidos emergentes se anunciarem como seus profetas.

Definido que parece estar o vencedor, duas questões animam os debates, os analistas, as sondagens. Uma é a abstenção, a outra é a do grau da vitória, isto é, se o vencedor virá, ou não, a dispor de maioria absoluta. É neste segundo cenário, a dúvida sobre se resultará uma partilha que suporte uma solução governativa semelhante à atual, apoiada à esquerda em áreas pontuais e muito concretas, ou uma maioria monopartidária suficiente para garantir o governo, que centrarei a minha atenção.

O eleitorado português tem más recordações das maiorias absolutas no parlamento. E tem razões para isso. As experiências dos governos decorrentes de maiorias absolutas de Cavaco Silva e José Sócrates não deixaram saudades. O próprio primeiro-ministro atual, que integrou este último, contrariando algumas vozes de peso no seu partido, diz sentir-se confortável com uma solução semelhante à atual. Já afirmou mesmo reconhecer que os portugueses não gostam de maiorias absolutas.

Mas há uma razão objetiva, de princípio, mais importante. A maioria absoluta, sendo democraticamente legítima, contem o gérmen que subverte o funcionamento da democracia assente na separação de poderes, no seu equilíbrio e no respeito mútuo pelas competências das suas diversas instâncias, legislativa, executiva e judicial.

O parlamento é, por natureza, o órgão de soberania representante da vontade popular. O executivo depende da assembleia que o legitima, controla e fiscaliza. Como escreveu António Sérgio, um dos nossos mais lúcidos pensadores, a democracia é «[…] sob o ponto de vista político, o regime em que são fiscalizados os governos pelos representantes da opinião pública, e em que os representantes da opinião pública votam as bases da legislação […]» (“Democracia”, A ideia da liberdade no pensamento português, Terra Livre, DGCS, Lisboa, 1985, p. 73) O mesmo dizia Jean-Jacques Rousseau, «Não é conveniente que aquele que elabora as leis as execute […]» (Contrato social, Editorial Presença, Lisboa, 1977, p. 80).

Ora, com as maiorias absolutas, o que tem acontecido é que, sendo por regra o primeiro-ministro também o líder do partido maioritário, aquela relação de dependência inverte-se, passando o executivo a comandar, controlar e fiscalizar o grupo parlamentar maioritário, logo a própria Assembleia da República. É o que se tem passado e com reflexos perversos no funcionamento das instituições. Como muito bem alertou o filósofo britânico Bertrand Russell, «Uma democracia em que a maioria exerce os seus poderes sem quaisquer restrições, pode ser quase tão tirânica como a ditadura.» (Porque não sou cristão, Brasília Editora, Porto, 1970, p. 198).

A maioria absoluta é uma aproximação ao poder absoluto. Escreveu Alain que «O poder corrompe todos aqueles que dele participam. Qualquer poder sem fiscalização enlouquece.» (Jean Touchard, História das ideias políticas Vol 6, PEA, Mem Martins, 1976, p. 102). Alguém terá traduzido isto de forma mais prosaica: “se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”.

As maiorias absolutas têm constituído experiências que têm fragilizado a democracia. E, já agora, permitam-me que conclua recorrendo mais uma vez a António Sérgio: « […] o princípio essencial da democracia é não nos fiarmos em quem governa.» (Ensaios Tomo III, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1972, p. 234) Para isso é essencial que o governo dependa e seja fiscalizado pelo parlamento, não o contrário, que é a lógica da maioria absoluta.

Major General Pezarat Correia (in A Viagem dos Argonautas)
9 de Setembro de 2019

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