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A história do rato e do psicólogo (António Guerreiro)

11 de Agosto de 2018


Na semana passada, assistimos em Portugal a dois fenómenos extremos: um, foi o excesso de calor, parecia que a Terra tinha saído dos eixos e tudo chegara a um ponto de extenuação; o outro foi a saturação do espaço público pela proliferação de artigos, crónicas, reportagens, opiniões, comentários, que escorreram como o caudal de um rio, sobre os negócios do vereador do Bloco de Esquerda em Lisboa.

Chegou-se ao limite em que o caso do vereador era uma protuberância tão dilatada que pensámos que ela iria parir. Mas não, era apenas uma manifestação espectacular da obesidade do sistema. Não há nenhuma prova de que estes dois fenómenos extremos tenham uma causa comum ou qualquer relação um com o outro, a não ser que os incluamos na vaga ideia de extenuação por excesso e num conceito muito alargado de poluição.

Não menosprezo a justiça imanente que assistiu aos dois fenómenos extremos e a punição que em ambos se cumpriu (um consenso científico diz-nos que o homem é tão culpado das alterações climáticas como da compra de bens imobiliários). Mas gostaria de mostrar aqui o paradoxo que consiste em as coisas, ao chegarem a um nível excessivo, se anularem ou começarem até a produzir o seu contrário.

No segundo fenómeno extremo a que me refiro, esse paradoxo é potenciado pelas manhas incontroláveis da reversibilidade. A reversibilidade é uma figura que explica o modo de funcionamento de alguns sistemas actuais. Foi isso que nos ensinou o sociólogo Jean Baudrillard, com uma forte pulsão especulativa, e que até chegou a ter um andar em Alfama. As histórias de reversibilidade, escreveu ele, são sempre as mais divertidas, como a do rato e do psicólogo. Nesta história, o rato conta como condicionou o psicólogo a dar-lhe um pedaço de pão cada vez que accionava um dispositivo da gaiola. Talvez seja precipitado transpor para a história do vereador, tal como ela se desenrolou na semana passada, um semelhante fenómeno de reversibilidade, mas uma saturação fatal, até à náusea, desviou o sentido das palavras e das frases que sobre o assunto se foram acumulando. Quase todas elas denunciavam justamente a falsa moralidade e as incoerências políticas do vereador.

Mas, por saturação, elas obstruíram o próprio sistema de onde emergiam e já só apontavam, dotadas de reversibilidade, para quem as pronunciava. Todo o discurso sobre o assunto já só parecia uma excrescência, um efeito que ganha vida autónoma, separando-se das suas causas.

Os factos implodem na hipertrofia dos comentários. E o demónio da reversibilidade perturba a possibilidade de percepções e juízos pertinentes porque se anulou até o sentido da realidade. Todo o discurso adquire então uma forma imoral e histérica, e é já só esse imoralismo que nos interpela e suscita reacção, já que o imoralismo e a contradição política insanável do vereador que começaram por ser o motivo da crítica, da denúncia e da indignação perderam substância e resistência.

O motivo da “festa” desaparece porque esta vai para além dos seus próprios fins e torna-se hipertélica. Começa por ser uma orgia, mas prolonga-se de maneira patética: há sempre alguém ainda a correr para alimentar a orgia e não deixar que ela acabe. Não há êxtase que sempre dure, e uma orgia alimentada como uma novela deixa de ser uma orgia, é um  serviço obrigatório, mais militar do que civil.

Uma pergunta conhecida, cheia de implicações, devia ser colocada à porta onde se aglomeram tantos funcionários da palavra erecta: “What are you doing after the orgy [com o vereador imoral]”? Nada, absolutamente nada, a não ser tornar bem visível a obscenidade e a inércia de um mundo saturado.

António Guerreiro – “Público” 10 agosto 2018

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