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A pandemia e a indústria do comentário

20 de Julho de 2021


A televisão conta e tem poder. Por isso é tão importante discutirmos as opiniões de quem nos entra em casa pelos écrans para nos dar as suas versões da realidade. (Estrela Serrano)

A paisagem televisiva nacional é desde há anos percorrida por uma originalidade portuguesa conhecida como “indústria do comentário”. Trata-se de um negócio que tem proliferado em Portugal mercê de circunstâncias várias, tais como um sistema mediático com canais televisivos de informação operando 24 horas por dia, alimentando-se em grande parte de opiniões, debates e comentários; grupos de media economicamente débeis e fortemente concorrenciais; proliferação de novos media; uma sociedade civil pouco motivada para a participação democrática; um sistema político-partidário enfraquecido e contaminado pela entrada de um partido populista no Parlamento.

Estas alterações societais trouxeram para o espaço público actores oriundos sobretudo do campo político e mediático que encontraram nele lugar para combate de ideias e afirmação de convicções e interesses. Os media tradicionais, em particular as televisões, criaram a figura do “comentador residente” – maioritariamente membros dos partidos, ex-jornalistas e jornalistas de outros meios –, contratados para assegurarem uma programação de rotina, mais barata e disponível que outros géneros informativos como a reportagem ou o documentário, que requerem jornalismo de investigação. Nasceu assim uma indústria do comentário, com profissionais da opinião a circularem entre jornais, televisões e redes sociais, dotados de agendas próprias e com capacidade para imporem temas, enquadramentos e interpretações da realidade.

A pandemia covid-19 suspendeu temporariamente o predomínio destes protagonistas, trazendo ao espaço televisivo actores oriundos de campos científicos até então arredados dos écrans. Foi um tempo em que a ciência ocupou o lugar privilegiado antes concedido à política: epidemiologistas, pneumologistas, virologistas, infecciologistas, intensivistas, promoveram a reflexão e trouxeram ao debate público a investigação e a experimentação, acrescentando mais-valia às matérias noticiosas fornecidas pelas redacções. Ao permanecerem no seu território de especialização, os novos comentadores mostraram respeito por nós e por si próprios. Mostraram que a ciência e o conhecimento implicam responsabilidade e humildade. Não hesitaram em dizer que não sabiam quando não sabiam e admitiram o erro quando erraram.

Pouco a pouco, porém, as grelhas televisivas voltaram à “normalidade”. A par dos “tudólogos” de antes da pandemia surgiram actores oriundos de áreas profissionais ou académicas que vieram juntar-se aos antigos “residentes”, ocupando espaços regulares de debate e comentário. São especialistas nas suas profissões mas, ao contrário dos especialistas trazidos pela pandemia, viraram “tudólogos” na televisão, comentando temas que vão da política à economia, da educação à saúde, do emprego ao futebol, da juventude à velhice. O modelo interessa às televisões porque assegura tempo de antena, criando a habituação e a previsibilidade necessárias à fidelização de audiências. Porém, desvaloriza o saber especializado e a qualidade do comentário.

Na tipologia dos comentadores televisivos mantém-se ainda a categoria mais antiga – a dos ex-líderes partidários. É uma categoria privilegiada pelas televisões. Dois deles opinam actualmente em horário nobre nos canais generalistas privados de sinal aberto. Os governos caucionam a figura do político-comentador ao fornecerem-lhes informação privilegiada, convertendo-os em seus porta-vozes. Neste caldo de cultura, jornalistas profissionais aceitam fazer de “pés de microfone” – uns contracenando com eles, outros dando eco às suas “cachas” –, contribuindo para a perversidade de um sistema que lhes troca os papéis ao fazer do comentador aquele que dá notícias e do jornalista aquele que as recebe e as propaga.

A pandemia covid-19 recolocou a televisão no centro das nossas vidas. A espectacularidade e o dramatismo das imagens dos primeiros meses, de figuras de branco sem nome e sem rosto rodeando camas de hospitais onde doentes agonizavam, as cidades e ruas desertas, são inesquecíveis e insubstituíveis no efeito de condicionamento das nossas mentes. A televisão conta e tem poder. Por isso é tão importante discutirmos as opiniões de quem nos entra em casa pelos écrans para nos dar as suas versões da realidade.

Estrela Serrano – “Público” 19 julho 2021

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