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Intervenção de Adelino Gomes na entrega dos Prémios Gazeta 2010

O que quero dizer-vos que considero importante, nos breves minutos que me cabem?

Que nasci e cresci na fortaleza jornalismo. E que isso significa reconhecer ter exercido a maior parte da minha actividade profissional numa cultura de arrogância, que tendia a subordinar os direitos de quem nos lia, nos ouvia, nos via  ao nosso direito a escrever, a dizer, a mostrar, da forma que entendíamos ser a mais correcta.

Mas quero dizer-vos também que não gostava de ver o jornalismo transformado numa ilusória torrente de informação que toda a gente produz e em que tudo vale e tudo tem o mesmo valor: notícias e estados de alma; a disciplina de verificação convivendo com o boato; a assinatura de par com o anonimato.

Dizer-vos que não gostava de ver o marketing sentado na redacção.

E o jornalismo transformado num imenso  News of the World em que um empresário, um grupo de editores ou mesmo uma redacção se arrogam o direito de seleccionar, produzir, manipular e até inventar  os factos que hão-de relatar em função do impacto que terão junto da sua clientela, isto é, em função de proveitos comerciais, e/ou de interesses governamentais,  económicos ou outros quaisquer.

Houve sempre (ainda que hoje talvez mais do que ontem) uma relação tensa entre a razão editorial e a razão empresarial.

Numa muito interessante reflexão, vertida em livro recente, José Luís Garcia vê os jornalistas na posição ambígua de “funcionários de uma indústria” e de “funcionários da humanidade”. No cumprimento do primeiro papel, buscam o lucro; no segundo, criam e transmitem “informações e formas de conhecimento consideradas relevantes para a própria constituição da comunidade política e do todo social”.

Trata-se de um desafio tremendo a uma classe profissional e a cada um de nós, individualmente.

Por mim, nunca senti problemas em trabalhar numa indústria e em ajudá-la a prosperar. Mas procurei nunca esquecer o vasto mundo que dá sentido e é razão de ser desta actividade; e que a primeira lealdade do jornalismo é para com os cidadãos (como estabelecem os célebres princípios do Comitee of Concerned Journalists, animado por Kovach e Rosenstiel).

Concordo que é importante, que é didáctico, que é essencial meditarmos sobre o que foi bom e que hoje é mau no jornalismo que fazemos. Preocupam-me muito, por exemplo, a precariedade laboral, por um lado, mas também o lugar secundário que a ética e o inconformismo ocupam nas redacções.

Mas penso que é justo atentarmos também no que foi mau e hoje é bom no jornalismo. Por exemplo: todos os dias leio, ouço, vejo peças de excelente jornalismo escritas, ditas, apresentadas por excelentes jornalistas das novas gerações. Os trabalhos distinguidos pelo Clube de Jornalistas nos últimos anos – e desta vez, outra vez – são disso prova.

Quero dizer-vos, com a autoridade (etária) de quem começou a trabalhar num tempo em que vários escreviam ainda à mão, nas redacções; em que o gravador portátil era ainda um tijolo roufenho cujos sons os técnicos resistiam em passar para fita e em que as imagens não conheciam ainda a cor; em que não havia nem computadores, nem telefones portáteis, nem internet, nem YouTube, nem Facebook nem Twitter,

[quero dizer-vos] que  acredito que  os novos media  representam uma oportunidade e uma responsabilidade  extraordinárias para a cidadania e para o jornalismo.

A oportunidade de assistirmos à emergência de uma linguagem de comunicação e informação universal sem precedentes, na qual todos somos/seremos, simultaneamente, produtores e destinatários de informação.

E a responsabilidade de preservarmos,  nesse novo bazar comunicacional, a componente de serviço público da produção jornalística enquanto tal: o que implica apostar na qualidade, servida por uma curadoria efectiva que contextualize e forneça sentido às escolhas informativas.

Porque, como dizia recentemente um crítico de media norte-americano, Jonathan Alter, só com conteúdos de qualidade a cidadania pode tomar decisões racionais…

Com informação de qualidade –  interessante mas também relevante.

Não com a prevalência daquilo a que Carl Bernstein, um dos dois jornalistas do caso Watergate, designava  muito recentemente, por “espectáculo e triunfo da  cultura da idiotia”, expressão em que abarcava  talk-shows e  notícias sobre celebridades.

45 anos depois, continuo orgulhoso e agradecido à sociedade por me ter deixado entrar e permanecer nesta profissão.

E continuo a acreditar num conjunto de direitos/deveres que, para mim, para lá de todas as evoluções tecnológicas, continuam a defini-la e devem ser preservadas:

A liberdade e a independência crítica

A credibilidade

E aquilo a que chamarei a decência (que implica um profundo sentido de responsabilidade e de respeito pelo interesse público e pelos direitos do outro – seja ele um cidadão, uma comunidade, uma cultura, outro género, outras raças, outros povos).

A terminar:

Agradeço ao júri esta distinção – a que não se concorre, como sabem.

É certo que, por razões compreensíveis, os júris tendem a atribuí-la a gente em final de carreira.

Não me ofendo por me estarem a lembrar assim, publicamente, a minha idade profissional. E a sugerirem – ainda que delicada e tão simpaticamente – que será hora de partir.

Partir dos prémios, concordo.

Da intervenção pública, se não se importam, não.

E por intervenção pública quero significar: o direito à opinião e outras formas de contribuir para melhorar o estado da nossa profissão – que constitui, como sabem, na melhor da sua tradição histórica, uma forma inestimável de contribuir para melhorar, escrutinando-o, o estado da cidade e do mundo.

Adelino Gomes
11 Outubro 2011