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Manuela Moura Guedes e a liberdade de informação

A liberdade de informação deve defender-se mesmo quando os visados representam o que de pior existe na informação

1 – Praticamente toda a oposição afirmou ou insinuou a responsabilidade directa ou indirecta do Governo e do PS no afastamento de MMG, unicamente porque José Sócrates, sendo a principal vítima do seu programa, criticou essa aberração jornalística. Se ele estava contra o programa, a sua extinção beneficiou-o; e se o beneficiou, ele é responsável por essa extinção. Eis o farisaísmo no seu melhor.

Desde Sá Carneiro (e a campanha de que foi alvo) que o debate político em Portugal não descia tão baixo e o oportunismo dos dirigentes partidários não subia tão alto. A ética e a rectidão foram decididamente arredadas da política portuguesa, que se transformou numa selva onde vale tudo para se conseguir uma vantagem eleitoral ou mediática.

É de elementar justiça dizer-se que o actual Governo é um dos que menos interferiram com a comunicação social que dele depende. Basta ver o que se passa com a RTP, esse barómetro incontornável para medir as tentações de controlo político da informação.

Nunca a informação das estações públicas de rádio e de televisão teve tanta qualidade e tanta isenção e imparcialidade como hoje. Pelo menos ninguém se queixa, o que é caso inédito em Portugal. E isso deve ser creditado (por acção) aos jornalistas daquelas estações, mas também (por omissão) ao Governo (e o mesmo se diga em relação à Agência Lusa). Sobretudo se nos lembrarmos do que se passava anteriormente com perseguições a jornalistas (Mário Crespo, Miguel Sousa Tavares e Barata Feio, entre muitos outros), afastamento de colaboradores, extinção de programas de informação, alinhamento político dos telejornais por imposição externa, despedimentos por motivos políticos; enfim, tudo isso existiu e agora não. Mas já ninguém se lembra. E ainda bem.

2 – A liberdade de informação assenta na independência dos jornalistas e uma e outra tanto se afirmam externamente perante os poderes político, económico, religioso ou outros como internamente perante as próprias empresas proprietárias.

A Constituição da República e a lei ordinária impõem que a organização interna das empresas de comunicação social seja estruturada de modo a salvaguardar a respectiva independência editorial.

Por isso existe uma hierarquia independente cujo topo é a direcção de informação e que é a única entidade com competência sobre os jornalistas, os conteúdos informativos e os programas ou as rubricas de informação. A intervenção directa de outros órgãos (incluindo as gerências ou os conselhos de administração) nas estruturas editoriais constituirá sempre uma violação das garantias legais e constitucionais da liberdade de informação.

Um dos instrumentos privilegiados de defesa da independência interna dos jornalistas e da liberdade interna de informação são os conselhos de redacção, que são órgãos (eleitos pelas redacções) com competência para se pronunciar sobre todos os sectores da vida e da orgânica das empresas que se relacionem com o jornalismo, e ainda com as alterações ao estatuto editorial, a substituição dos directores de informação, as admissões e os despedimentos de jornalistas, bem como a apreciação de certos textos de publicidade redigida. Os conselhos de redacção, quando funcionam devidamente, constituem um contrapoder ao poder dos directores nomeados pelas administrações.

Ora, no caso TVI, é óbvio que a administração da empresa não podia proceder directamente à substituição de MMG, pois tal é da competência exclusiva da direcção de informação. Esse afastamento, independentemente dos motivos que o determinaram, consubstanciou, assim, uma violação da Lei da Televisão e não pode deixar de se considerar como uma ofensa à liberdade (interna) de informação.

É claro que o programa em causa e a jornalista visada ofendiam permanentemente os valores fundamentais da liberdade de informação e a dignidade do jornalismo em geral (com faltas de isenção, de objectividade e de imparcialidade, com perseguições pessoais, com acusações sem provas, com manifesta má-fé na interpretação de factos, com a não-audição dos visados, etc.).

Além disso, também não é por acaso que na estação não existia um Conselho de Redacção, em violação, aliás, do artigo 38.º da Lei da Televisão. É que este órgão não deixaria de constituir um limite aos poderes dos hierarcas editoriais nomeados pela administração, tais como a própria MMG e o seu marido J. Eduardo Moniz. Deve-se ser moderado quando se enaltece a liberdade de informação numa empresa onde os jornalistas foram impedidos de constituir um órgão previsto na lei para garantia dessa liberdade.

Também não nos devemos surpreender que pessoas que violam os valores do jornalismo e da informação invoquem esses valores quando lhes convém. Tal como os direitos humanos se defendem, muitas vezes, nas pessoas dos piores criminosos, também a liberdade de informação se deve defender mesmo quando os visados representam o que de pior existe no jornalismo e na informação.

Como decidiu, há anos, o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos, a propósito do caso Larry Flint (um editor que invocou a liberdade de expressão para promover o conteúdo pornográfico das suas revistas), “no mundo das questões públicas, muitas coisas feitas sem princípios são protegidas pela Primeira Emenda” (normas constitucionais que garantem a liberdade de expressão). E isso, justamente, porque o STF americano considerou – e bem – que “a liberdade de nos expressarmos é um aspecto vital da liberdade individual que é essencial para a procura da verdade e para a vitalidade da sociedade como um todo”.

António Marinho e Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados
“Público” 11 Set 09