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A privatização da RTP e o vírus da herpes

A ideia de acabar com o serviço público de rádio e de televisão é como o virus da herpes: fica adormecida durante largo tempo e de vez em quando tem uma erupção passageira.
O que não compreendo é como chegámos a 2010 e os defensores da extinção do serviço público continuam sem perceber o significado das palavras «serviço público» associadas à rádio e à televisão. Ou percebem muito bem e andam a enganar os crédulos.
A retórica pró-privatização tem um argumento (A RTP custa dinheiro ao Estado) e uma solução (encomenda-se o serviço público às estações privadas).

O argumento dos custos, só por si, é tonto — imaginemos alguém a defender a privatização da polícia porque a PSP custa dinheiro ao Estado. O que é necessário é saber onde se gasta o dinheiro, controlar os orçamentos e vigiar a sua execução. Que há custos excessivos ou desnecessários em parte do serviço público de rádio e televisão só pode ser novidade para os distraídos, mas a lição a extrair é a de que devem ser criados mecanismos de controlo mais eficazes.

A solução aventada é duplamente falaciosa. Admitindo, por redução ao absurdo, que se privatizaria a RTP, o Estado teria que continuar a dispender dinheiro com aquilo que se pensa que seria o «serviço público» encomendado às estações privadas. E nada garante que gastaria menos do que gasta agora, porque às despesas juntar-se-ia o inevitável lucro. Outra falácia – e bem anedótica – é dizer que se encomenda um serviço público de rádio e televisão a várias empresas privadas.

O nó do problema é que uma larga percentagem dos que falam em serviço público de rádio e de televisão confundem o serviço global que o Estado assegura com serviço ao público (os conteúdos distribuídos pelo serviço público). Alguns com má fé, mas a esmagadora maioria por ignorância.

Os CTT, cuja privatização parece ter já um calendário, são, agora, um serviço público e virão a ser, a curto prazo, um serviço privado. A privatização não altera, no essencial, a natureza do serviço ao público. As cartas continuarão a ser enviadas e recebidas e, se a privatização fosse operada secretamente de um dia para o outro, ninguém notaria a diferença.

O mesmo não acontece com o Serviço de Informações de Segurança, que é um serviço público e que presta um serviço ao público (indirecto, mas claramente um serviço aos cidadãos), mas não pode ser privatizado porque a sua actividade só tem razão de ser num quadro de serviço público.

Ou seja, há serviços públicos que podem ser privatizados e outros em que a privatização não faz sentido.

O que se passa com o serviço público de rádio e de televisão é que a razão da sua existência está na sua condição de serviço público (de propriedade do Estado, relembro) e não no facto de prestar, também, um serviço ao público.

Não vou, naturalmente, escalpelizar aqui todas as particularidades do serviço público de rádio e televisão. Fico pela informação, um dos pilares que justificam o serviço público, e o alvo oculto de quem defende a privatização.

Nas sociedades em que vivemos, os media privados pertencem a grupos económicos poderosos, com interesses repartidos por vários sectores de actividade e com ligações umbilicais a partidos e movimentos políticos de direita. As excepções contam-se pelos dedos de uma só mão.

É um facto que o conteúdo dos media reflecte, no que se refere às questões políticas e económicas estruturantes, o pensamento e os interesses dos grupos proprietários porque é assim a natureza das coisas. Isto significa que esses media dão, em determinadas circunstâncias, uma perspectiva enviesada ou parcial da realidade.

Embora com percursos diversos e em tempos diferentes, foram sendo desenvolvidos, na segunda metade do século XX, na Europa, no Canadá e no Japão, conceitos de grupos de media de propriedade pública que garantem aos cidadãos uma informação independente e pluralista. São os serviços públicos de rádio e de televisão.

Serviços públicos porque são propriedade pública e não porque difundam informação de utilidade pública, como a meteorologia ou as datas das vacinas da gripe. Esta visão redutora e anedótica do serviço público está, aliás, na origem da peregrina ideia de entregar os «conteúdos do serviço público» a empresas privadas.

Pergunto: se o conceito de serviço público é o de contrapor uma informação independente e pluralista à informação dos media privados, como se pode defender a extinção do serviço público e reduzir a produção de conteúdos informativos aos media privados?

Respondo: Não se pode. O objectivo é, mesmo, acabar com a informação independente e pluralista garantida pelo Estado.

Em desespero de causa, os defensores portugueses da extinção do serviço público argumentam com a interferência governamental no processo informativo da RTP. É um argumento fraco, porque essa interferência pode ser eliminada através da adopção de procedimentos e modos de organização do serviço público que estão em vigor noutros países.

Uma nota final: É interessante verificar que estas iniciativas desconchavadas contra a RTP coincidem com a pacífica consolidação dos serviços públicos de rádio e televisão nos países mais avançados da Europa e, até — pasme-se! — com a defesa, nos EUA, de soluções para os media que passam pela criação de entidades de natureza pública.

João Alferes Gonçalves