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A China e o Afeganistão: o que esperar desta (não-)relação? (Anabela Santiago)

A China e o Afeganistão partilham cerca de 60 quilómetros de costa a noroeste, na controversa zona de Xinjiang. Para além disso, partilham interesses económicos, esses que estão tantas vezes no centro de tudo. Com efeito, a China dispõe de uma indústria de aparelhos eletrónicos muito desenvolvida e necessita de matéria-prima para os componentes, alguma dal qual o Afeganistão dispõe em abundância, nomeadamente, as terras raras, os minerais e como não poderia deixar de ser, o petróleo.

Mas tudo isto já era verdade antes do passado dia 15 de agosto, mas nunca como a partir de então se levantaram tantas dúvidas. De facto, a retirada das tropas americanas do território afegão e a tomada da capital pelos talibãs marcou uma reviravolta na história do país, assim como na geopolítica mundial. Quando tal sucedeu, Pequim afirmou que os acontecimentos indiciavam um “novo ponto de partida” para o Afeganistão, mostrando esperança de que os talibãs possam vir a ter um papel construtivo no país.

Muitos acusam a China de pactuar com um regime que atenta contra as liberdades individuais. A comunidade internacional que já começava a olhar de lado o gigante asiático – aliás como há muitas décadas já não acontecia – tem agora mais um motivo para o fazer. Se o motivo é legítimo, temos de esperar para ver. Mas parece-me que poderá ser fruto de um desconhecimento do outro, neste caso, da República Popular da China em matéria de diplomacia externa. Efetivamente, todo o seu posicionamento se baseia nos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica que resultaram da Conferência de Bandung em 1955 e que se contrapõe fortemente ao modelo de ingerência americano que, por sinal, parece ter entrado em decadência.

Os cinco princípios resumem-se nestes tópicos: (1) coexistência pacífica, (2) respeito recíproco pela integridade territorial e soberania das nações, (3) não agressão, (4) não ingerência nos assuntos internos dos outros países, e (5) benefícios recíprocos nos relacionamentos entre os povos. Portanto, com base nestes princípios, a China não irá interferir nunca na política do Afeganistão, nem tomar posição quanto a ideologias ou não tivesse tido o país um Presidente como o Deng Xiao Ping – o grande arquiteto da reforma que permitiu a entrada da China numa era moderna e próspera – que afirmava que “não importa se o gato é branco ou preto, desde que cace os ratos”.

E, portanto, à luz destes Princípios de Coexistência Pacífica, não se espera que a China intervenha nos assuntos internos do país, até para conseguir negociar com ele o que lhe faz falta do ponto de vista económico. Do ponto de vista político e diplomático, o objetivo é preservar a sua imagem de potência em ascensão, mas ao mesmo tempo, uma potência promotora de um desenvolvimento pacífico, sustentável e responsável muito assente em valores ancestrais do confucionismo que apelavam ao respeito mútuo: “Trata os outros como gostarias que eles te tratassem a ti.”. O Sonho Chinês do atual presidente Xi Jinping vai beber às duas realidades, à realidade moderna da China altamente urbanizada, com padrões de vida moderna em vários domínios; e à China da época confucionista, regida por valores tradicionais de respeito mútuo e igualdade de oportunidades.

Assim, seria uma atitude muito sensata a de não condenarmos já a atuação do Governo Chinês sem previamente conhecermos o enquadramento histórico da posição chinesa em matéria de política externa e de diplomacia. Não assumamos já que se trata de uma forma de apoio ao regime talibã, quando na verdade se trata apenas de não-ingerência na soberania de outros Estados, constituindo também, de certo modo, uma forma de salvaguardar a sua segurança nacional.

A China veio ocupar um lugar deixado vazio pelos Estados Unidos, mas de acordo com as palavras do seu Presidente, ela “não intimida, não ameaça, não subjuga, nem oprime outras nações”. Contra factos não há argumentos, até ver.

Anabela Santiago, Doutoranda em Políticas Públicas (Universidade de Aveiro) e Mestre em Estudos Chineses (Universidade de Aveiro/ ISCTE)

“Expresso” 23 setembro 2021

https://expresso.pt/opiniao/2021-09-23-A-China-e-o-Afeganistao-o-que-esperar-desta–nao–relacao–813151e7 [1]