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As doidas do sexo

28 de Setembro de 2020


Em 1917, eminências da psiquiatria declararam louca a dona do DN por assumir relação com o motorista; em 2020, uma miúda de 20 anos é exposta, insultada nas redes e psiquiatrizada na TVI por ter sexo com dois rapazes. Um século depois, o desejo sexual feminino ainda é sinónimo de doença. (Fernanda Câncio)

O filme Ordem Moral estreou a 10 de setembro. Conta a história de Maria Adelaide Coelho da Cunha, a dona do Diário de Notícias – filha do seu fundador, Eduardo Coelho – que foi em 1917 declarada louca pelos mais eminentes psiquiatras da época, Egas Moniz e Júlio de Matos. A evidência da loucura? Ter, aos 48 anos, “senhora da sociedade”, rica, casada, fugido com um motorista 21 anos mais novo. A ideia de uma mulher daquela idade e condição largar tudo e arrostar o escândalo por uma relação “pecaminosa” bastava para a considerarem doida de manicómio – e num manicómio, o Conde Ferreira, no Porto, a fecharam, sem apelo nem agravo.

Nessa época, vigorava um artigo do Código Penal – e vigoraria até 1975, quando foi expressamente revogado – permitindo o homicídio da adúltera pelo marido “enganado”. Este era penalizado apenas com até seis meses de “exílio da comarca” se matasse a mulher nessas circunstâncias, assim como as filhas até aos 21 anos que, vivendo sob o “pátrio poder” – ou seja, na sua casa -, o “desonrassem”; do mesmo modo, era lei que o adultério da mulher, e só da mulher, dava direito a prisão maior (este crime só seria abolido em 1973).

Tivemos pois neste país até à segunda metade do século XX leis que tratavam o desejo e a prática sexual das mulheres, se não autorizados pelo casamento, e portanto pela sua pertença contratual a um homem, como, mais que pecados, crimes a merecer como castigo as galés e mesmo a morte (os suplícios e ferros em brasa tinham sido abolidos em 1826). Mais: até aos anos 1990 o crime de violação, definido no Código Penal de 1982, o primeiro da democracia, como “cópula com mulher” (homens não podiam, à luz da lei, ser violados), previa atenuação “se a vítima, através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente”, tivesse “contribuído de forma sensível para o facto” – ou seja a vítima, porque mulher e porque estava em causa sexo, era à partida condenada a suspeita e julgamento, opróbrio e enxovalho.

Do mesmo modo, esteve em vigor até à democracia um Código Civil que colocava as mulheres casadas sob tutela económica e legal dos homens e que considerava a falta de virgindade no momento do casamento como motivo para a respetiva dissolução – algo que obviamente se não aplicava ao homem. As mulheres ou chegavam “intocadas” ao matrimónio ou podiam ser repudiadas e oferecidas ao escárnio e apedrejamento públicos.

Um século é nada, umas poucas décadas menos ainda: é à luz destas leis escritas e não escritas que continuam a vigorar e ecoar no mundo jurídico – explicando as decisões repugnantes de Netos de Mouras e o célebre acórdão da “sedução mútua”, mas também o facto de a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ter aceitado um programa de mestrado que ressuma de ódio às mulheres, só o retirando quando o escândalo rebentou publicamente – que devemos interpretar a fúria linchadora com que foi mimoseada a anónima jovem “apanhada” em vídeos com outros dois jovens a ter sexo numa carruagem de comboio.

Todas as “notícias” sobre o caso – que partilham imagens nas quais quem conheça as pessoas, nomeadamente a ela, poderá identificá-las – põem o foco na rapariga e na sua conduta. Chegam mesmo a atribuir-lhe uma frase retirada de uma alegada troca de mensagens privada que foi exposta nas redes – e que me escuso de referir por motivos óbvios – para com base nela a julgarem e qualificarem.

Com base nessa frase que não se faz ideia se foi escrita pela pessoa que aparece no vídeo – pode ser uma invenção -, e tendo sido pertence a uma conversa privada e portanto protegida pelo direito à intimidade, não podendo ser divulgada, houve meios qualificados como jornalísticos pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, como o diário Correio da Manhã, a fazer títulos. Houve até um programa de televisão, o programa da mulher que se assume como – e é – uma das pessoas mais poderosas do país e que em sua defesa, quando atacada por ter mudado de canal, puxou a cartada do feminismo, a “analisar”, com o préstimo de “especialistas”, psicológica e até psiquiatricamente a rapariga.

Uma rapariga da qual não sabem nada a não ser o facto de ter sido filmada numa carruagem de comboio a ter sexo com outras pessoas e sobre a qual se atrevem a fazer teorias que incluem a possibilidade de “ter sido abusada”. Porque, ouve-se e não se acredita, se ela está a ter sexo “daquela maneira”, é porque “tem uma dor, uma ferida”: “Há vazios e feridas emocionais tão grandes que só podem ser saradas através da sexualidade”, pontifica a psicóloga presente.

Uma dor é ver alguém com a responsabilidade – mais que não seja a que decorre das suas ambições e do que conseguiu até agora – de Cristina Ferreira, que já se queixou, e bem, de ser julgada e acusada de coisas que num homem são consideradas qualidades, a usar o seu poder para expor, achincalhar e julgar uma miúda desta forma desalmada.

E por que crime? Antes de mais o de ter sexo – sexo com dois rapazes e num lugar público. O mesmo procedimento que no caso dos dois rapazes não lhe causa, nem a ela Cristina Ferreira nem aos convidados do seu Dia, qualquer incómodo ou ensejo de “compreensão” e “enquadramento”, quanto mais de avaliação psiquiátrica. “Isto é sinal de quê, a nível mental, Vera [de Melo]?”, pergunta Cristina à dita psicóloga sobre a rapariga. E depois de ouvir a sua comentadora advogada, Patrícia Cipriano, diagnosticar o comportamento sexual da jovem “como desviante”, corrobora: “Porque é num sítio público e com dois jovens ao mesmo tempo.” E prossegue: “Estes jovens vão falar em todo o lado, na escola, onde quer que seja, desta experiência. Esta rapariga vai ser conhecida por isto. E se não se importa temos de ver porque não se importa. Temos de perceber enquanto sociedade e nós enquanto formato televisivo temos aqui um papel essencial.”

Sim, Cristina está extremamente preocupada por esta rapariga “ficar conhecida por isto” e com o papel pedagógico do seu programa – por isso mostrou imagens da miúda e citou uma alegada mensagem privada dela, por isso coloca todo o foco da situação nela.

Quanto aos rapazes, nada: se parte do princípio de que estes se vão gabar e expor a rapariga, isso não lhe indicia nenhum tipo de “situação mental”. Aliás, é interessante que não se ponha em toda a conversa a hipótese de que tenham sido eles a divulgar os vídeos e as mensagens citadas – quando existe pelo menos um vídeo que está a circular, e que decerto a produção do programa viu, filmado por um deles, e no qual inclusive mostra a própria cara. Sobre essa “vontade de fama” dele não há análise porquê?

Porque, claro, rapazes vão ser rapazes. E dois rapazes a ter sexo, seja numa carruagem de comboio ou noutro sítio qualquer, desde que com uma rapariga (se fosse entre eles outro galo cantaria), é “natural”. Estão a fazer aquilo para que existem. E se se filmarem a ter sexo e até divulgarem as imagens (se foi isso que aconteceu, e tudo leva a crer que sim), também é completamente normal; é normal até serem umas bestas – Cristina antecipa-o. Já ela, a rapariga, está, para usar uma muito eloquente expressão brasileira, “a dar para eles”; a ideia de que eles “estão a dar para ela”, e que o mesmo gozo ou prazer que eles têm com o que estão a fazer ela pode ter também, com a mesma naturalidade que se aceita neles, surge fora de questão para a diretora de programas da TVI e os seus quatro “especialistas”.

Nenhum dos quais – há ainda os “comentadores de assuntos criminais” Vítor Marques e António José Teixeira – achou relevante explicar que filmar cenas íntimas e divulgar os vídeos respetivos, assim como mensagens privadas, sem o consentimento de todos os intervenientes é, além de indecente e repugnante, crime. (Sendo indiferente que as cenas tenham ocorrido num lugar público; aliás, frise-se que o sexo em público só é crime de exibicionismo se alguém se considerar pessoalmente lesado pelo espetáculo e apresentar queixa – o crime só é público se a vítima, ou seja, o espectador, for menor.)

Como é indecente e repugnante e criminoso uma televisão participar nessa devassa. Essa pedagogia ninguém se lembrou de fazer, evidentemente; a pretensa moral só serviu para alimentar o voyeurismo e erguer a pira onde arde uma miúda com idade para ser filha ou mesmo neta de toda aquela gente. Castigada e cuspida, arrastada na lama, anunciada como provável vítima de abuso.

Cem anos depois de Adelaide ser fechada num manicómio por ter sexo “desviante”, a rapariga do comboio recebe a mesma sentença. Com uma diferença; então a ex-dona do DN conseguiu, ao escrever nos jornais, pôr o público do seu lado. Nestes dias de Cristinas não há sequer essa hipótese.

Fernanda Câncio . “Diário de Notícias” 26 setembro 2020

https://www.dn.pt/edicao-do-dia/26-set-2020/opi-cancio-as-doidas-do-sexo-12762119.html

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