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Para uma cidadania participativa

A afirmação das democracias fez-se em paralelo com a da imprensa. O 25 de Abril destruiu-a. Urge favorecer o seu relançamento… (Nobre-Correia)

Em 1787, em Paris, Thomas Jefferson, principal redator da declaração de independência dos Estados Unidos, é categórico: “Se tivesse de decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria um momento em preferir a segunda [situação].” Mas foi precisamente o contrário que a nova classe dirigente portuguesa decidiu fazer após o 25 de Abril. Com a ajuda de políticos (ou de candidatos a sê-lo) que procuraram fazer dos jornais instrumentos de manobra. De militares que, tendo-se livrado das guerras, não sabiam muito bem para onde se voltar e brincavam aos novos chefes. E de jornalistas (sobretudo de jornalistas-novos) para quem as redações se confundiam alegremente com barricadas de guerrilha permanente.

Uns e outros e outros foram assim destruindo os numerosos diários e semanários ditos “nacionais” que restavam do antigo regime. Quando, apesar dos cataclismos da primeira e da segunda guerras mundiais, e até mesmo do período entre elas, a maioria dos títulos britânicos, italianos e até franceses foram preservados. Quando muitos até tinham alinhado em posições claramente antidemocráticas e mesmo “colaboradoras”. Os jornais faziam geralmente parte dos “móveis de família”, do meio ambiente de cada um: os avós e os pais já liam tal título, e, por conseguinte, era evidente que havia que preservar a ligação afetiva com ele.

Ora, no Portugal democrático, a imprensa “nacional” de informação geral foi quase totalmente destruída. “Nacional” queria dizer de Lisboa e do Porto. Porque, no resto do país, esse tipo de jornais era praticamente inexistente desde que as revoluções liberais permitiram que se praticasse jornalismo (e não militantismo cultural ou político) e, sobretudo, desde que, com o lançamento do Diário de Notícias em 1865, se desenvolveu uma atividade cuja preocupação primeira era informar um vasto “leitorado” e fazer disso uma atividade rentável.

Por outras palavras: a classe dirigente portuguesa sempre procurou arredar o povo dos corredores do poder. Arredar primeiro aquela gentalha que vive “na província” e que não tem que se meter em decisões que, bem evidentemente, são prerrogativa dos senhores que nos governam. Premissa tanto mais fácil de executar que o povo vivia na miséria e no analfabetismo, e que os jornais mal chegavam ao “interior”. Depois, graças à censura ou ao “exame prévio”, foi fácil continuar a manter o Zé Povinho todo na ignorância das decisões referentes aos destinos da nação.

Com o 25 de Abril, os novos meios dirigentes resolveram a questão muito simplesmente: liquidaram ou deixaram liquidar os jornais de informação geral e fizeram da rádio e da televisão simples aparelhos de diversão baratucha. E quando a “modernidade” propôs que se fizessem televisões de informação contínua, criaram-se estações de paleio em que “tudólogos” de toda a espécie ganham a vida e procuram tornar-se incontornáveis, enquanto políticos fazem campanha permanente (com os resultados bem patentes na atual liderança da nação).

Se a imprensa generalista foi largamente varrida da cena mediática é porque, bem mais do que o audiovisual, solicita a razão, a articulação lógica do pensamento, propondo contraditório, nuance e complexidade das situações. Enquanto que na rádio e na televisão a componente distrativa é geralmente maioritária, caraterizando-se nelas o tratamento da informação de atualidade sobretudo pela imediatidade e a emotividade. Razões que explicam que a classe dirigente tenha feito desaparecer ou deixado desaparecer os média de informação escrita e proliferar anarquicamente os média audiovisuais.

Giuseppe Mazzini, político, filósofo e jornalista do Risorgimento, dizia que “a imprensa é para o intelecto o que o vapor é para a indústria”. Dois séculos depois, a “imprensa” já não é necessariamente impressa. Mas, no momento histórico de incertezas que atravessamos, a informação escrita, em papel ou em digital, é absolutamente indispensável. Queira a classe dirigente do país favorecer o aparecimento de novos jornais e reforçar os existentes, de modo a que, aqueles de que só se lembra em véspera de eleições, possam partilhar responsabilidades de cidadania com ela…

(José-Manuel Nobre-Correia – “Público” 27 julho 2020)