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Cofina condenada a pagar 55 mil euros a Miguel Macedo

A exibição dos interrogatórios ao ex-ministro pela CMTV e a notícia falsa de que tinha sido detido são os motivos da condenação da Cofina. Mas Tribunal Cível de Lisboa considerou não ser possível responsabilizar pessoas concretas. Nem sequer o director Octávio Ribeiro.

40 mil euros por ter exibido ilegalmente, em novembro de 2015, imagens e áudio dos interrogatórios do ex ministro da Administração Interna Miguel Macedo e 15 mil euros por, um ano antes, ter noticiado que este fora detido. Foi esta a decisão do juiz 8 do Tribunal Cível de Lisboa, em sentença datada de 3 de dezembro, condenando a empresa Cofina Media, proprietária da CMTV e Correio da Manhã, ao pagamento da de 55 mil euros a Miguel Macedo.

Foram no entanto absolvidos os outros réus. Quer o então diretor da CMTV Octávio Ribeiro (hoje diretor editorial da Cofina) como todos os outros funcionários da Cofina que vinham acusados por Macedo: Tânia Laranjo, Eduardo Dâmaso (então diretor-adjunto do Correio da Manhã, hoje diretor da Sábado) e Henrique Machado.

O tribunal considerou a exibição dos vídeos dos interrogatórios, ocorrida a 28 e 29 de novembro de 2015, “um ato ilícito e culposo, que extravasa o direito à informação, que em concreto feriu direitos de personalidade do Autor [Miguel Macedo] e que reveste relevo e gravidade bastante para conduzir à condenação da Cofina em pagamento de indemnização”.

E que também “andou mal” o “grupo jornalístico” ao noticiar, a 13 de novembro de 2014, que Miguel Macedo havia sido detido – quando tal nunca ocorreu. “Ainda que, todavia”, lê-se na sentença, “tenha consistido num lapso involuntário, trata-se de matéria com relevo suficiente para não poder ser tratada com ligeireza – sem que haja notícia de retratação.”

Diretor “sem intervenção em conteúdos”

Estes factos, porém, ocorreram sem que o tribunal consiga encontrar provas suficientes para responsabilizar por eles, individualmente, algum dos funcionários da Cofina Media levados por Macedo a tribunal.

Conclui por exemplo não se ter provado que o à época dos factos diretor da CMTV e Correio da Manhã, Octávio Ribeiro, tivesse “orientado, autorizado e determinado” quer a exibição dos interrogatórios quer a publicação da notícia da detenção ou quaisquer outros conteúdos relacionados com o processo.

Baseia-se para isso o tribunal nos depoimentos de funcionários da empresa – Carlos Rodrigues, Paulo Santos e Eduardo Dâmaso (este réu) – que, diz, “foram em sentido antagónico.”

E prossegue: “Foi possível alcançar que o trabalho jornalístico está grandemente atomizado e que Octávio Ribeiro tem um papel quase protocolar e estratégico – nas palavras de Carlos Rodrigues – sem intervenção de espécie alguma em conteúdos, títulos, subtítulos e imagens.”

Isto apesar de a mesma sentença citar um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de maio de 2013 no qual se estatui que “o diretor é, pela própria titularidade da função e pelas competências legais com que o onera o respetivo exercício, responsável pelos concretos conteúdos publicados, salvo se provar não ter conhecimento, ter-se oposto ou não ter podido opor-se à publicação.”

Em relação à notícia da detenção de Macedo, que foi dada numa frase “passando” no ecrã, Carlos Rodrigues, atual diretor-executivo da CMTV, “depôs no sentido de que o diretor não escolhe frases, de que Tânia Laranjo não faz frases e que Henrique Machado também não. Quanto à referência a Macedo detido, como Eduardo Dâmaso estava em estúdio, não podia ter sido ele a decidir o texto.”

Perante a impossibilidade de responsabilizar alguma das pessoas apontadas por Macedo, conclui-se que “sem embargo, ficou claro que, mesmo sem se ter apurado quem, em concreto, se encontrava na redação ou no estúdio de televisão, com poder de coordenação e de direção, as pessoas designadas para esse efeito, as pessoas incumbidas pela Cofina media com esse fito, tinham conhecimento do teor das notícias e consentiam na respetiva publicação.”

Tânia Laranjo condenada e absolvida do mesmo facto

Esta conclusão do Juiz 8 do Tribunal Cível de Lisboa parece colidir com do Juiz 6 do Tribunal Criminal da mesma cidade, que pela exibição na CMTV dos vídeos dos interrogatórios de Macedo – condenou a redatora principal do canal, Tânia Laranjo [1], a uma multa de 880 euros pelo crime de desobediência. Baseando-se para tal no depoimento de várias testemunhas, que incluem o mesmo Carlos Rodrigues que depôs perante o Tribunal Cível.

Na sentença do Tribunal Criminal Carlos Rodrigues é citado como tendo dito que “a arguida Tânia Laranjo tinha ‘autonomia máxima’ para propor conteúdos ao editor, o que terá feito concretamente naquela situação, tendo sido a mesma que assinou as reportagens sobre o assistente Miguel Macedo.” E este tribunal comenta até que “as referidas testemunhas, que mantêm relações profissionais com a CMTV, pretenderam precisamente isolar a referida arguida [Tânia Laranjo] na prática dos factos (particularmente em face da própria estação de televisão e os respetivos diretores).”

Mas Laranjo ser, de acordo com o Tribunal Criminal, autora das peças que usaram excertos dos interrogatórios de Macedo exibidas pela CMTV (às quais terá emprestado a sua voz, participando também, em estúdio, do debate havido sobre o que se via e ouvia nessas peças) não terá resultado evidente para o Tribunal Cível.

Notícias são “teoria da conspiração” mas “aceitáveis”

Macedo, que pedia uma indemnização de 175 mil euros, incluiu na queixa várias notícias e manchetes do diário Correio da Manhã que ou o tinham como objeto ou o relacionavam com uma foto sua. O juiz 8 do Tribunal Cível não considerou porém que “extrapolaram o aceitável”.

Em causa estava por exemplo a manchete de 23 de novembro de 2015 “Escândalo Vistos Gold: Miguel Macedo vendia informação privilegiada por comissão de 7%”, correspondendo a uma notícia, assinada por Tânia Laranjo e Eduardo Dâmaso, com o título “Miguel Macedo vendia facilidades em troca de comissões” – referindo ocorrências de 2008, quando Macedo era deputado e não ministro, ao contrário do que se depreenderia da publicação. Ou, a 14 de novembro de 2014, “Corrupção: luvas e prendas em negócio de 40 milhões” – título de primeira página, acompanhado da foto de Miguel Macedo.

Ora o tribunal, embora frisando que “é evidente que há questões abordadas pelo jornal que resultam penosas” – e exemplifica com a notícia de 23 de novembro de 2015 ( “Macedo vendia facilidades em troca de comissões”), na qual, “em letras mais pequenas, fica a constar que dados não foram considerados para a acusação e ficaram em apenso” -, considera que “compulsadas as notícias enunciadas (…) salvo melhor opinião, não é possível concluir que o respetivo teor é meramente efabulado, desgarrado de qualquer realidade e que os jornalistas agiram de forma infundamentada e culposa.”

E explica: “É verdade que as notícias colam títulos com realidades, nomes com casos, numa quase word salad [salada de palavras], pensamentos desorganizados, pontas soltas, em que muito mais do que dizer se sugere, se dá a entender, no fundo, ao cabo e ao resto, que onde há fumo há fogo, que alguma coisa há, que umas realidades e outras estão todas conexas, que é tudo muito grave, que há muito dinheiro envolvido, que é mais do mesmo, que os políticos são corruptos, que os interesses estão todos conexos numa trama invisível e etc, etc, etc.” E que “confrontadas as notícias uma a uma, fica apenas uma amálgama de relações entre a pessoa do Autor [autor da ação, Miguel Macedo], ministro da administração interna, e a concessão desenfreada de vistos a cidadãos chineses e um concurso para aquisição de helicópteros que combatem incêndios.”

Uma amálgama que, descreve a sentença, tem poucos “factos aproveitáveis” e é basicamente “uma teoria da conspiração”: “Fala-se em protocolos, entidades públicas, privadas, concursos, contactos, emails, informação privilegiada, um autêntica teoria da conspiração em que o Correio da Manhã sabe, não há dúvidas. Os hiatos temporais, os saltos lógicos são de tal ordem e feitio que não se alcança o que sabe e sobre o que é que o Correio da Manhã não tem dúvidas. Os factos aproveitáveis são desgarrados e não seguem qualquer cronologia.”

“Visar a todo o custo audiências não é juridicamente censurável”

Mas, argumenta o juiz 8, “até por isso” – sendo “isso” a tal amálgama com “poucos factos aproveitáveis” – “não é propriamente possível imputar uma verdadeira responsabilidade aos autores, que insinuam, deixam antever, dizem saber mas, ao cabo e ao resto, não dizem o que sabem. Ressalta-se que o que chama mais a atenção de forma mais emblemática são os títulos e os subtítulos, cuja autoria não foi identificada, parecendo ter tido origem na pessoa de todos os jornalistas.”

Por outro lado, lembra a sentença, “estavam em causa figuras de Estado e de alto nível do Estado, em área sensível como a administração interna. As suspeitas, as extrapolações não ultrapassaram o que era razoável veicular. Poderão ter sido desenquadradas e descontextualizadas. Os jornalistas poderão ter visado a todo o custo leitores e audiências, mas tal desiderato não é, por si só, juridicamente censurável. Não há indícios de que tenha havido má-fé. (…) Pode o tribunal sancionar eventuais desinterpretações da realidade, condenar que os jornalistas encarem as matérias de um ponto de vista público, de suspeição, entreveja corrupção onde há denodo em cuidar do interesse público? Não nos parece.”

E há ainda, aponta o juiz 8, o sigilo das fontes, pelo que “é impossível saber qual a origem das notícias. Não é possível determinar se os jornalistas agiram com base em fontes fidedignas, que tornasse, aceitável veicular que o autor agia da forma enunciada.”

Notícias e manchetes são “opiniões” e “julgamentos de valor”

Invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que “tem sido particularmente severo com os tribunais portugueses por entender que estes fazem uma interpretação excessivamente restritiva do poder e da liberdade da imprensa”, o juiz 8 cita Francisco Pereira Coutinho (em O TEDH e a Liberdade de Imprensa: os casos portugueses ) sobre a tendência daquele tribunal para distinguir entre “declarações de facto (notícia) e julgamentos de valor (opinião).”

De acordo com o autor citado, o TEDH considera que “se as notícias podem ser provadas, as opiniões não se prestam a demonstração de veracidade, pelo que se torna impossível para um jornalista a manifestação da opinião se a verdade é a única defesa disponível. Por outras palavras, saber se uma afirmação é uma declaração de facto (notícia) ou um juízo de valor (opinião) constitui fator decisivo no nível de proteção que recebe à luz da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – se se tratar de um juízo de valor receberá proteção ampla, quase absoluta, caso a opinião prestada não seja desprovida de base factual e seja feita de boa fé.”

E com base nesta argumentação o juiz 8 escreve: “Sempre haverá quem julgue mal, quem opte pela pior perspetiva, quem não coloque em confronto várias possibilidades. (…) Não impende tão pouco sobre o tribunal o ónus de aquilatar da qualidade das opiniões emitidas, contanto ​​​​​​​estas se contenham dentro dos limites do razoável, no contexto dos factos concretos. Sob pena de se exercer uma verdadeira e própria censura, seguramente mais prejudicial ao interesse público do que a proliferação incessante de juízos, há que ter como aceitável a emissão de opiniões. No caso vertente, estas não extrapolaram o aceitável.”

O juiz 8 assenta pois o seu julgamento sobre as notícias, títulos e manchetes referidos encarando-as como “opiniões emitidas”, mesmo se antes havia citado quer o Código Deontológico dos Jornalistas quer a lei do Estatuto dos Jornalistas. Nomeadamente, que “o jornalista deve interpretar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”; “deve combater o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas como grave falta profissional”; “deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e atos profissionais, assim como promover a pronta retificação das informações que se revelem inexatas e falsas”; “deve preservar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado.”

CMTV voltou a exibir interrogatórios em 2018

Miguel Macedo foi absolvido [2], em janeiro, de todas as acusações – três crimes de prevaricação de titular de cargo político e de um crime de tráfico de influência – no processo Vistos Gold, tal como Manuel Palos [2], o ex diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que fora acusado de corrupção passiva e dois crimes de prevaricação.

Este, curiosamente, fez, como o ex-ministro da Administração Interna, queixa-crime relativa à exibição dos seus interrogatórios na CMTV. Mas ao contrário do que se passou com a queixa de Macedo, que deu origem a uma acusação do Ministério Público [3] que resultou, na sentença do Tribunal Criminal de Lisboa já citada, na condenação de Tânia Laranjo [1], a queixa de Palos foi arquivada [4]. Quem no Departamento de Investigação e Ação Penal a investigou considerou que apesar de se estar perante o crime de desobediência não valia a pena avançar com um inquérito porque “atendendo à exposição jurisprudencial maioritária” seria “ineficaz conduzir um processo por conduta de desvirtuamento da legalidade”. [4]

Enquanto decorriam as investigações relativas à exibição pela CMTV dos interrogatórios de Palos e Macedo quer a CMTV quer a SIC exibiram, em abril de 2018, imagens e áudios dos interrogatórios de arguidos e inquirições de testemunhas do Processo Marquês. A Procuradoria-Geral da República anunciou logo nessa altura uma investigação, que terminou com acusação e pronúncia [5], pelo crime de desobediência, dos funcionários dos dois canais que o Ministério Público considera serem responsáveis pela transmissão dos interrogatórios. Entre os acusados está Ricardo Costa, o diretor da SIC. No caso da exibição dos interrogatórios de Miguel Macedo, o MP não deduziu acusação contra qualquer diretor da CMTV.

Fernanda Câncio – “Diário de Notícias” 6 dezembro 2019