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O Universo num grão de areia

Há coisas que parecem impossíveis antes de acontecerem, como essa de o Universo caber num grão de areia, ou, num plano mais próximo e de outra ordem de grandeza, de um Presidente da República portuguesa se sentar num auditório e apresentar/debater um livro de um escritor moçambicano. É claro que tudo se torna mais fácil quando o Presidente se chama Marcelo Rebelo de Sousa, o escritor é Mia Couto e o universo tangível é o da Lusofonia.
Mais do que um lançamento foi um happening e aconteceu nesta quarta-feira na Gulbenkian. O Universo num grão de areia é o último livro de Mia Couto e promete tornar-se num êxito editorial.
Para bom entendimento da obra, deixamos aqui as notas de que Zeferino Coelho, da editora Caminho/Leya, se socorreu para explicar aos presentes no auditório da Gulbenkian como nasceu este livro e o que ele tem de extraordinário.

O presente livro de Mia Couto, O Universo num Grão de Areia, recolhe um conjunto de intervenções que o autor fez nos últimos anos e em que aborda alguns dos grandes temas do mundo de hoje e sobre os quais Mia Couto tem manifestado as suas opiniões. O conteúdo do livro é extremamente rico e variado. A seguir apresentam-se um conjunto de citações que ilustram isso mesmo:

  1. As recentes inundações na cidade da Beira
    «”Soube que querias vir à Beira, por causa do livro que estás a escrever, diz Dany. Pois te dou um conselho: não venhas agora”»
    Mia Couto está a escrever um romance todo localizado na Beira e na sua região. Foi lá e viu o estado em que ficou a casa onde viveu a infância e a adolescência, a escola que frequentou, a igreja de Macuti, que ocupa um lugar de relevo no romance.
  2. Sobre a família
    “Os meus pais não nos deixaram outra herança que não fosse esta: o gosto de nos entregarmos inteiramente, sem esperar outra recompensa que não seja o gosto de viver próximo dos outros.” p.39
  3. Sobre a Infância
    “Muitos pais oferecem brinquedos aos filhos. E pensam que isso é suficiente. A nenhuma criança basta ter brinquedos. Ela quer, sim, converter o universo numa coisa de brincar. Ela pretende dos pais uma relação de cumplicidade com esse delírio criativo sem limite nem fronteira. A criança não quer apenas uma brincadeira. Ela quer uma brincriação.” p.103
  4. Sobre a Juventude
    “É melhor uma juventude inquieta do que uma juventude submissa. Sobretudo porque nenhuma juventude é tão submissa assim. O que não pode florescer no tempo certo acaba sempre por explodir mais tarde.” p.73
  5. Sobre a África
    “A mãe África é, contudo, uma mãe solteira. Desejada, esquecida, seduzida, mas sempre vista como carente de marido, sustentada por uns, abandonada por outros.”
    p.75
  6. Sobre a Escravatura
    “As elites políticas de hoje não são ingénuas. O maniqueísmo com que se olha o passado é aquele que melhor serve hoje. Quando se julga os crimes de escravatura parece que do lado africano ninguém foi nunca culpado. A lixiviação das responsabilidades de ontem ajuda a lavar as mãos dos crimes de hoje.” p.79
  7. Sobre a Corrupção
    “Sabe, senhor Mia, eu gostava muito de ser uma pessoa honesta, mas falta-me o patrocínio.” p.48
  8. Sobre o papel da literatura
    “As histórias da minha infância ensinaram-me que as palavras podem apagar o tempo e a distância. Essa que foi e será sempre a minha casa ganhou dimensão sagrada porque ela se construíra de histórias. Nesse improvável templo aprendi o poder da literatura: a possibilidade de emigrarmos de nós mesmos, a possibilidade de nos tornarmos outros, a possibilidade de reencantar o mundo.” p.85
    “A literatura pode ser uma resposta contra o convite para a fabricação do medo e da desconfiança. A literatura confirma como somos parentes e próximos na nossa infinita diversidade.” p.91
    «A escrita literária é uma sobrevivência da necessidade de nos tornarmos caçadores. A literatura é o novelo que faz de conta que é um rato, perante um gato que faz de conta que está caçando.» p.101
    “Um dos caminhos que nos pode ajudar a resgatar essa moral perdida pode ser o da literatura. Refiro-me à literatura como arte de contar e escutar histórias. Falo por mim.” p.40
  9. Sobre a Violência sobre as Mulheres
    «A Justiça que se faz (ou melhor, que não se faz) no caso das mulheres não traduz apenas uma falta de eficácia do Estado. Revela também a existência de uma instituição invisível que é anterior e está acima de todas as instituições do nosso Estado. Essa “instituição” chama-se cultura patriarcal e conservadora que domina a cabeça de alguns dos executores das nossas leis, sejam eles homens ou mulheres.» p.147
  10. Sobre a menorização da mulher
    «O escultor Auguste Rodin teria que fazer um esforço impensável para representar de outro modo a imagem masculina do pensador. Uma mulher sentada na mesma posição seria entendida como a figuração da depressão e a imagem serviria hoje de publicidade para um qualquer Prozac.» p.179
  11. Sobre Muros e fronteiras
    “Há contudo uma diferença fundamental entre as fronteiras criadas pela vida e aquelas que nós criamos. As primeiras são entidades orgânicas, vivas e permeáveis. Foram feitas para negociar entre o “dentro” e o “fora”. O problema é que nós, seres humanos, temos dificuldade em criar fronteiras vivas. Criamos barreiras que servem para fechar. São muros altamente vigiados que nos fazem prisioneiros e que sufocam a nossa criatividade. Nós emparedamos o pensamento.” p. 176
  12. Sobre o peso do vazio na vida actual
    «Esse fascínio pelo brilho exterior estende-se a todos os domínios. Não interessa tanto quem sejas. Interessa o que vestes e como te vendes. Não interessa o que realmente sabes fazer. Interessa a arte de elaborar CV, de acumular cursos e de te saberes colocar na montra. Não interessa o que pensas. Interessa como embrulhas o pensamento (ou a sua ausência) num bonito invólucro de palavras. Não interessa, no caso de seres governante, como governas e como produzes riqueza para a sociedade. Interessa a pompa e a circunstância. Em suma, o que pesa é o vazio.» p. 163
  13. Sobre o Futuro
    “A minha filha mais nova sentia-se triste porque lhe faltava na sua adolescência o sentido épico que marcou a minha juventude. Uma vez perguntou-me: