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A mentalidade provinciana (José Pacheco Pereira)

5 de Outubro de 2019


A completa ausência de debates, discussões, posições sobre matérias internacionais na campanha eleitoral revela o carácter paroquial da nossa política. Revela também uma profunda inconsciência sobre o que se está a passar no mundo, que pode alterar todos os nossos planos e projectos nacionais de um dia para o outro. Porém, revela uma coisa ainda pior, a interiorização da completa impotência nacional para ter uma política externa que corresponda ao interesse nacional, e aos interesses comuns que partilhamos com os nossos aliados. Este desinteresse é acompanhado pela comunicação social, que, salvo raríssimas excepções, acha que falar destas coisas não interessa a ninguém, deita abaixo as audiências ou, pior ainda, sugere que é como dar pérolas a porcos, pela ignorância dos portugueses sobre a política internacional. É um círculo vicioso que se agrava cada vez mais e se torna mais preocupante, porque a situação internacional é cada dia mais perigosa.
O desprezo pelas questões internacionais tem duas faces e uma natureza diferente em cada uma, embora haja elementos comuns.
As duas faces são a Europa e o mundo, a política nacional e comum na União Europeia e a política externa propriamente dita face aos grandes problemas globais, o independentismo catalão, a guerra das tarifas, a presidência Trump, o crescendo do autoritarismo e a crise da democracia nos EUA, Brasil, Turquia, Filipinas, Hong Kong, as grandes linhas geoestratégicas face à Rússia, China, o Médio Oriente, o ambiente, os direitos humanos (ou a falta deles), as guerras e migrações, etc. Sobre tudo isto, quase nada, como se pudéssemos continuar com a nossa vidinha sossegada, com o mundo a arder à nossa volta.
O caso da Europa é mais complexo, mais difícil de discutir, porque existe uma censura objectiva para impedir a sua discussão livre, devido ao peso do “consenso europeu” que inclui todos os partidos de governo, PS, PSD, CDS, e compromete no silêncio os partidos que têm alianças, como a “geringonça” — falam, discordam, mas são inconsequentes.
O mesmo se passa com a atitude europeísta da maioria da comunicação social, que tende a proteger a “discussão” europeia de um verdadeiro escrutínio e a repetir aÆrmações sem fundamento. Veja-se o que se passou sobre a “importância” do pelouro da comissária portuguesa, e do bravado nacional sobre o seu papel crucial, para depois se descobrir a redução dos seus poderes, o corte dos seus fundos e a colocação sofrível no ranking dos comissários. Em tudo o que é secundário e ilusório somos os maiores, no que é mais importante, nem um pio. Nem vale a pena chover no molhado.
Ora, se a Europa está de rastos, é uma sombra do que era, e o que sobra das ruínas é uma tendência para limitar as democracias nacionais a favor de soluções impostas pelos grandes países, em particular a Alemanha, no resto do mundo aproxima-se a tempestade perfeita. Se olharmos para os EUA sob a presidência autocrática de Trump, assistimos ao declínio da democracia americana, com enormes repercussões em todo o mundo, favorecendo regimes como a Rússia de Putin e a China comunista, ambas beneficiando da política isolacionista dos EUA, e do carácter caótico e errático da sua política externa. Mesmo esta descrição é eufemística, à medida do que vamos sabendo, por exemplo, sobre a Ucrânia e a utilização de chantagem sobre um país fragilizado pelo seu conflito com a Rússia, para obter não só informações, mas procedimentos judiciais contra o seu adversário principal, Biden. O narcisismo patológico de Trump, as suas obsessões de grandeza são a fractura que países como a Arábia Saudita têm usado com sucesso para prosseguir uma política contra o xiismo, tendo como alvo o Irão. Essa política entronca com o radicalismo sionista de Netanyahu e ameaça levar a uma guerra no Golfo Pérsico, com países dotados de armamento sofisticado e exércitos numerosos, e que podem causar enormes danos à economia mundial.
O mesmo Trump que é alegremente toureado pelo ditador da Coreia do Norte permanece silencioso sobre Hong Kong mesmo em plena guerra de tarifas com os chineses, e em tudo o que toca deixa o rasto da sua vaidade e incompetência, agravando todos os conflitos que já existiam. Já nem vale a pena perguntar como é que isto aconteceu e como o mundo pode estar à mercê de um psicopata, porque a verdade é que já aconteceu.
Os nossos candidatos a primeiro-ministro e os partidos que os apoiam têm opiniões sobre o que se passa para além da nossa frágil fronteira? Logo aqui ao lado, o que vão dizer e fazer quando o Estado espanhol mandar os presos políticos catalães para longas penas de cadeia? E que opiniões têm sobre os planos de Boris Johnson para negociar o “Brexit”?
Ou como vão tratar gente como Bolsonaro? Isto, num país que parece que só conhece um ditador no mundo, o obscuro Obiang da Guiné Equatorial. Ou como vamos responder às tarifas de Trump de produtos da União Europeia? Também vamos impor tarifas? Convém lembrar que em muitas destas matérias Portugal tem um voto na União. Não deveríamos saber como ele vai ser usado? O problema das paróquias não é quem lá vive, é quem lhe define as fronteiras, a identidade e a dignidade. A Dinamarca também é pequena, mas mandou Trump passear na sua proposta “absurda” de comprar a Gronelândia. Sem hesitações.

(José Pacheco Pereira – “Público” – 5 outubro 2019)

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