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A honra do senhor secretário de Justiça

13 de Abril de 2014


Enquanto os tribunais portugueses não perceberem o violento efeito censório destas condenações judiciais impostas a quem critica e participa na vida pública em nome das inúmeras honras que florescem no nosso país, Portugal continuará a ser sistematicamente condenado pelo TEDH. Mas, pior do que isso, continuará a sofrer de um crónico atraso expressivo. (Francisco Teixeira da Mota)

A honra do senhor secretário de Justiça

Em Setembro de 2002, quando se começou a falar da doação dos móveis antigos do Tribunal de Santa Cruz à Misericórdia, Isabel e Fernando eram, respectivamente, directora e jornalista do Jornal do Centro, com sede em Viseu. E mergulharam a fundo na investigação jornalística do caso. O Fernando contactou com o secretário de Justiça do tribunal que tinha distribuído os móveis, com a Misericórdia, que ficara com uma grande parte dos mesmos, com o Ministério da Justiça e, ainda, com membros de associações locais que nada tinham recebido.

O título do artigo do Fernando foi Misericórdia sob suspeita, e nele relatava que o Tribunal de S. Pedro do Sul, na pessoa do seu secretário judicial, tinha entregue à Misericórdia local mais de metade dos móveis antigos que lhe competia distribuir. Sendo certo que havia suspeitas de que parte desse mobiliário tinha ido parar a casa de particulares. Mais referia o descontentamento existente em outras associações que não tinham tido sequer conhecimento do facto de o tribunal estar a doar o antigo mobiliário.

A Isabel escreveu um artigo de opinião em que afirmava: “Pega-se no mobiliário e entrega-se. Sem concurso público. Sem critérios de distribuição, sem preocupação em levar a informação a todas as entidades eventualmente interessadas. Todas mesmo. E concentram-se as peças numa só mão. Sabe-se lá porquê. E em nome de quê. Não admira que a justiça se transforme em injustiça. Isto quando bastava levar a preocupação um pouco mais longe”.

Fernando e Isabel pensavam que tinham feito bom jornalismo, que iria ser reconhecido como uma mais-valia para a sociedade. Enganavam-se…

O secretário judicial e a Misericórdia – ofendidos nas suas gigantescas honras – queixaram-se ao tribunal e Isabel e Fernando foram julgados e condenados. A punição foi severa: cada um foi condenado numa multa de 2.000 euros, pela prática do crime de difamação, e ainda a pagarem indemnizações ao secretário do tribunal e à Misericórdia no montante global de 7.000 euros. Era para aprenderem a não se meterem com quem não deviam.

Para o Tribunal de S. Pedro do Sul, Isabel e Fernando, embora tivessem feito “tudo aquilo que estava ao seu alcance para apurar os factos”, ao escreverem e publicarem os artigos, tinham pretendido “gerar nos leitores uma mensagem de desconfiança para com os comportamentos dos agentes envolvidos na distribuição do mobiliário do tribunal” na medida em que, nos artigos, “trespassa a mensagem” (!) de que o secretário não foi imparcial e favorecera a Misericórdia com a intenção de que esta viesse a entregar, posteriormente, os móveis a funcionários do tribunal. Segundo o tribunal, a intenção do Fernando e Isabel fora  ofender o secretário do tribunal e a Misericórdia na “sua honra e consideração”. Foi duro de ouvir para os jornalistas e música celestial para o secretário de Justiça, que via lavada, não em sangue, mas em euros a sua destroçada honra!

Fernando e Isabel recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde encontraram a tradicional aversão à liberdade de expressão: embora afirmando ter conhecimento das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que dão uma protecção forte à liberdade de expressão, os juízes desembargadores Isabel Valongo e Paulo Guerra preferiram confirmar a decisão censória do tribunal da 1.ª instância.

Fernando e Isabel queixaram-se, então, junto do TEDH de violação da sua liberdade de expressão (declaração de interesses: fui advogado de ambos junto do Tribunal Europeu). E, no passado dia 3, o TEDH veio esclarecer que os jornalistas tinham razão: o artigo do Fernando limitara-se a identificar as organizações beneficiárias dos móveis do tribunal, esclarecendo que a Misericórdia recebera 34 num total de 69. Relatava também o descontentamento e suspeitas de representantes de outras associações, declarações que não tinham sido postas em causa. E a Isabel dera a sua opinião crítica sobre o modo de distribuição dos móveis, manifestando o seu desacordo com o carácter vago da regulamentação e os poderes discricionários de quem dirigia o processo. Para o TEDH, os artigos da Isabel e do Fernando eram “contribuições cívicas para um debate de interesse geral”. Nada justificava a condenação de ambos face à liberdade de expressão e de opinião de que os artigos eram uma manifestação concreta.

Declarou, assim, o TEDH que o Estado português violara a liberdade de expressão que estava obrigado a proteger e condenou-o a pagar ao Fernando e à Isabel todas as despesas do processo.

Enquanto os tribunais portugueses não perceberem o violento efeito censório destas condenações judiciais impostas a quem critica e participa na vida pública em nome das inúmeras honras que florescem no nosso país, Portugal continuará a ser sistematicamente condenado pelo TEDH.

Mas, pior do que isso, continuará a sofrer de um crónico atraso expressivo.

Francisco Teixeira da Mota – “Público” 11 abril 2014

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