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O país que vivia “vida de rico” (José Pacheco Pereira)

4 de Abril de 2014


Falando num debate corporativo, Vítor Bento, economista, conselheiro de Estado, disse, no mesmo dia em que novos dados sobre a gravidade do empobrecimento dos portugueses vieram a público, que “o país empobreceu menos do que parece. O país já era pobre, vivia era com vida de rico” (…). “Criávamos a aparência de ser mais ricos”.

Deixo de barato a questão do sujeito da frase, esse perverso “nós”, que nos iguala a todos diante do professor com a palmatória na mão, mas volto-me para o que, nesta tese, é revelador dos discursos situacionistas dos nossos dias. Para além do desprezo e da nonchalance de falar assim do “empobrecimento” dos outros, e que tem entranhada uma condenação moralista dos maus hábitos dos portugueses, estes homens virtuosos como Vítor Bento dizem-nos coisas reveladoras. Uma é que, no actual empobrecimento, há duas razões: uma conjuntural – “teve de se ajustar a despesa para o rendimento que existe e, no processo, o rendimento caiu” –, que foi uma maçada ter acontecido; e a outra estrutural – “o resto é empobrecimento aparente, porque a riqueza também era aparente”, ou seja, outra maneira de dizer que “vivíamos acima das nossas posses”, que é um programa económico, social, político e… moral.

Num momento em que o conjunto de explicações simplistas e reducionistas à volta do “ajustamento” mostra os primeiros sinais de estar a perder força na sua circulação no espaço público, ele torna-se ao mesmo tempo mais defensivo e mais agressivo. Eu não menosprezo o seu sucesso mediático e a sua interiorização nas pessoas comuns, que foi e é maior do que os seus contraditores desejariam, muitas vezes como culpa, mas hoje pode-se ver como elas conduziram a um impasse quer no pensamento quer na acção. Ao passarem do imediato, da resposta quase pavloviana à bancarrota de Sócrates, para o mais longo prazo do pós-troika, elas revelaram enormes fragilidades a todos os níveis, do económico ao político.

Voltemos às teses de Vítor Bento. Elas começam por nos falar do passado e percebe-se que não é o passado imediato da actual crise. Se fossem apenas os desvarios de Sócrates, dificilmente se encontraria justificação para ir mais longe do que corrigi-los. Não, eles precisam de algo mais de fundo, para poderem fazer a revolução dos maus costumes portugueses. A coisa já vem de trás, mas desde quando? Desde quando é que os portugueses foram “ricos”? Quantos portugueses fizeram, como ele diz, “vida de rico”? Quando é que se viveu uma “riqueza que era aparente”? Em 2005, quando Sócrates começou a cortar o défice, com um aplauso hoje esquecido? Em 2004, no rápido reino de Santana Lopes quando anunciou ao Frankfurter Allgemeine que vinha aí a “retoma”, o “fim da crise”, a “economia a recuperar”, “todos os sinais são bons” e “nova baixa de impostos”? Em 2002, quando estávamos de “tanga” e ou era ou estradas ou criancinhas? Nos anos de Guterres, onde se distribuiu o bodo (como aliás com Sócrates) aos mesmos empresários e banqueiros que louvaram esses governos com a mesma intensidade com que louvam o actual? No tempo de Cavaco Silva e dos milhões que chegavam todos os dias? Ou desde o 25 de Abril, em que se perdeu o respeito pelo ouro das caves do Banco de Portugal? Estamos a falar de Portugal?

Mas de que “riqueza” é que estamos a falar? Não é a dos ricos da Forbes. Eu sei o que é a “vida de rico” a que ele se refere, quer àquela que serve para ilustrar o moralismo do discurso, quer àquela que verdadeiramente o preocupa. Para agitar a bandeira moral, servem algumas patetices avulsas: as férias a Acapulco, os divãs da Conforama, os plasmas para ver jogos de futebol, os jipes do FEOIGA (atenção que aqui já se está a entrar por outro caminho perigoso, não vá a CAP protestar), comprar um molho numa loja gourmet para épater les bourgeois do emprego ou a bourgeoise, gastar dinheiro insensato nos centros comerciais, alguma capacidade de consumo lúdico a que pela primeira vez muitos portugueses tiveram acesso e que mostraram a marca do novo-riquismo e da silly season. Ele não se refere a isso, mas a “vida de rico” incluí também comprar o Expresso aos sábados, ter televisão por cabo, ser sócio do Benfica e ir aos jogos, ir ao restaurante de vez em quando, comer marisco, comprar livros do José Rodrigues dos Santos, ter expectativas europeias, de ser como os franceses que se vêem nos filmes, ter um carro, mandar os filhos à universidade e ser parte da muito escassa opinião pública.

José Pacheco Pereira – “Público” 26 março 2014

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