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O Bairro de S. Sebastião (Carlos Esperança)

31 de Março de 2014


Primeiro fechou a farmácia. O organismo responsável declarou a área incompatível com a função e a botica migrou para a Av. Elísio de Moura. Perduraram as dores de cabeça e abalaram os comprimidos. Até o Centro de Saúde foi passado para Celas onde os velhos levam, no 7, os sacos de plástico, com caixas vazias, para renovarem os medicamentos, pedirem análises, marcarem consulta e regressarem no mesmo autocarro.

Das três mercearias, que expunham as hortaliças e a fruta, nos passeios, resta uma. A do Fernando Agapito foi definhando com a doença dele e não lhe sobreviveu. Acabaram os frescos e a propaganda partidária para os clientes, obrigados a ouvi-lo, se queriam os melhores legumes e a mais saborosa fruta, que o Fernando levantava-se cedo e escolhia a melhor, na praça municipal.

Há dias encerrou a Ilda, não suportou o aumento da renda e a ausência de fregueses, e o espaço está aos ratos e encargos do IMI, isto é, duplamente aos ratos. Subsiste o Luís, depois de lhe ter abalado a mulher, a refazer a vida e a aviar os clientes.

Até do outro lado, da Rua Brigadeiro Correia Cardoso, saíram a florista e a cabeleireira, tornadas supérfluas as flores quando minguam as posses para as vitualhas e desleixadas as cabeças femininas dos mimos quando os proventos deixaram de durar o mês.

Agora encerrou a papelaria que foi do Manuel Chelinho e que, nos últimos anos, foi a ocupação do Sr. Zé que, logo de manhã, prendia com molas os diários e as revistas na porta da garagem que lhe servia de estabelecimento e onde, aos sábados e domingos não faltavam os semanários. O Sarabando e o Martinho vinham de Santa Clara comprar-lhe os jornais antes do excelente café que o Américo serve no Bossa Nova, o único porto de abrigo de um bairro que vai morrendo.

Hoje fui comprar pela última vez o DN, ao Sr. Zé. Amanhã já não o recebe, é o último dia, tem de encerrar cedo a registadora para dar baixa da atividade neste mês de março e não pagar outro mês à Segurança Social.

A garagem que, durante longos anos, substituiu o pronto-a-vestir do Sr. Sanches, esteve ao serviço das notícias impressas e do atrevimento de larápios, que arrombavam a porta e varriam as prateleiras do tabaco, fecha definitivamente amanhã.

Os clientes começaram a escassear, os que compravam o jornal diário passaram para um semanário ou resignaram-se a disputar o Diário de Coimbra ou As beiras, no Café, sem que o preço da bica aumente com esse serviço suplementar.

Até a capela de S. Sebastião abre mais vezes para velar os mortos do que para a liturgia. Aos domingos ainda vão alguns idosos à missa, que os hábitos antigos não se perdem, e, aos sábados, aparecem os cristãos ortodoxos a quem os frades concedem as instalações pias para a liturgia a um deus que é capaz de ser o mesmo. E, do passeio, os Correios já arrancaram os marcos antes de o Governo vender a instituição. No início da R. António Jardim ainda resiste a cabine telefónica, alguns anos ao serviço do Monteiro, agora sem clientes, porque os filhos do professor de História lhe ensinaram a usar um telemóvel.

Na Praceta, há muito que os garotos deixaram de jogar à bola, não por falta de bola, mas porque os garotos se recusam a nascer no país que somos e no bairro onde escasseiam os pais e sobram avós.

Deste bairro, onde há mais de quarenta anos me fixei, vejo o país que encerra as portas, o Governo que alvitra a emigração e as pensões progressivamente confiscadas.

Raios parta a sorte.

Carlos Esperança –  30 março 2014

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