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Que jornalismo queremos?

13 de Outubro de 2009


Parece existir na sociedade portuguesa uma sensibilidade muito mais aguda para qualquer ameaça de ingerência do Estado e dos poderes públicos na comunicação social do que para os perigos que podem resultar, para a qualidade e a pluralidade da informação, da interferência dos critérios e dos objectivos dos grupos económicos que detêm, em número cada vez mais reduzido, a propriedade do sector privado de comunicação social.

A memória muito viva da usurpação da liberdade de informação pelo Estado Novo terá decerto a ver com o eco social que encontram as denúncias de tentativas de governamentalização, as alusões a ministros da propaganda e outras que, segundo as circunstâncias, surgem no espaço público. É positivo que tais denúncias despertem atenções, que os cidadãos não sejam indiferentes ao que possa pôr em perigo a integridade do regime democrático, e mais positivo ainda que elas sejam cabalmente confirmadas ou infirmadas, apurando-se as responsabilidades efectivas e ilibando quem deve ser ilibado.

Contudo, se não estendermos esta atenção ao que se passa no sector privado, e até às relações entre o Estado e o sector privado, patentes em diferentes arranjos jurídicos e político-institucionais no sector da comunicação social, não estaremos em boas condições para compreender o campo mediático na sua configuração actual, nem para participar nas escolhas de sociedade com que nos confrontamos.

Nos últimos meses, e em grande medida devido às ligações entre agendas políticas e mediáticas, as notícias que envolvem os próprios meios de comunicação social passaram a ocupar o destaque ainda há pouco reservado à crise económico-financeira. Começou com o episódio que envolveu a TVI e o fim do Jornal Nacional, pouco depois da passagem de José Eduardo Moniz para a Ongoing, que veio agora comprar 35 por cento da Media Capital, proprietária da TVI (e que detém cerca de 20 por cento da Impresa de Francisco Pinto Balsemão). Seguiu-se o alegado «caso das escutas» à presidência da República, que fez manchete do Publico a 18 e 19 de Agosto e se tratou afinal, como revelado pelo Diário de Notícias de 18 de Setembro, de uma notícia plantada no Público por Fernando Lima, assessor da Casa Civil do presidente Aníbal Cavaco Silva (com que conhecimento por parte deste?), num processo que suscitou sérias críticas quanto à ética e deontologia jornalística do jornal por parte do seu próprio provedor, Joaquim Vieira.

Nesse mesmo dia 18 de Setembro, com o Público e a sua direcção editorial sob forte ataque, o empresário Belmiro de Azevedo, presidente do Conselho de Administração do grupo SONAE, proprietário do Público, foi instado pelos jornalistas a comentar a peça do Diário de Notícias e a confirmar o seu apoio à direcção editorial de José Manuel Fernandes [1] . A sua resposta inicial revelou sobretudo um empresário interessado no retorno do seu investimento, negando ter «influência directa» no jornal e sendo animado por um único desejo para a publicação: «que passe a ganhar dinheiro e o faça sempre com a mesma linha editorial, isso é, com independência». Mas os laços mais complexos que ligam a propriedade dos media ao poder de influenciar a vários níveis a vida de um órgão de comunicação tornaram-se mais claros quando o empresário recomendou que a equipa do diário «não se deixe assustar por opiniões um bocado desastradas de alguns governantes que querem mandar no Público sem pôr lá dinheiro nenhum», acrescentando: «Não me importo nada que eles mandem, mas comprem o jornal». Os primeiros a ficar chocados com estas palavras terão sido, seguramente, os jornalistas sérios e de qualidade que trabalham no Público, mas é ao conjunto dos cidadãos que deve preocupar esta admissão de que, na prática, e mais ainda em períodos de crise, no jornal manda quem o paga, até porque as declarações se referem a assuntos da esfera editorial, não da gestão, sendo que esta divisão é, em si mesma, cada vez problemática.

Quando a informação é tratada como mercadoria, os meios de comunicação social como um simples negócio e a estrutura de propriedade dos media, cada vez mais concentrada, como pilar de uma ordem liberal assente na remuneração dos accionistas (e na precarização e quebra de autonomia para dos jornalistas), é o direito constitucional a informar e a ser informado que é posto em causa. Se o sistema mediático e os seus «novos cães de guarda» do sistema económico apostam na manutenção desta ordem, as respostas alternativas só podem vir dos cidadãos e dos profissionais que querem um outro jornalismo. Sem ingenuidade quanto aos perigos que sempre espreitam qualquer projecto jornalístico em que haja uma diferença de concepções entre a sua direcção editorial e os seus proprietários e fontes de financiamento.

Na edição portuguesa do Le Monde diplomatique decidimos há quase três anos que a criação de uma cooperativa cultural seria a melhor estrutura de propriedade para o nosso projecto jornalístico. Assim nasceu a Outro Modo. A mobilização dos cooperadores viabilizou o projecto financeiramente para o arranque e, com o início da actividade, tornaram-se fontes de receitas as vendas do jornal (assinaturas, bancas, venda directa) e do Atlas do Ambiente (vendas e apoios à edição), os cursos de formação e um subsídio à criação de empregos do PRODESCOOP – Programa de Desenvolvimento Cooperativo. Compreensivelmente, as receitas de publicidade no jornal, de que não faria sentido prescindir, têm sido tão inexpressivas que em 2008 não teriam chegado para pagar a impressão de metade de um só número.

O modelo por que optámos tem mostrado as potencialidades da cooperação, sendo dificilmente quantificável em termos monetários a preciosa contribuição que é dada pelo trabalho de largas dezenas de cooperadores e colaboradores (autores, tradutores, paginadores, designers, artistas visuais, organizadores de debates, formadores de cursos). As dificuldades financeiras, acrescidas em tempos de crise, não têm permitido desenvolver a actividade em áreas que consideramos fundamentais: alargar a componente portuguesa do jornal à reportagem e investigação de fundo crescentemente desprezadas nos outros jornais; investir na vertente Internet, com um arquivo que seja útil para o estudo e a investigação e com um maior acompanhamento da actualidade. Sabemos que é em primeiro lugar dos nossos leitores, e sobretudo dos que decidirem apoiar este projecto independente tornando-se assinantes ou cooperadores da Outro Modo, que dependerá a concretização destas linhas de actividade e a consolidação da nossa edição.

Sandra Monteiro (“Le Monde diplomatique”)

Segunda-feira 12 de Outubro de 2009

Notas

[1] Notícia e vídeo da entrevista no jornal i, www.ionline.pt/conteudo/23710-belmiro-azevedo-pede-ao-publico-que-nao-se-deixe-assustar—video.

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