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Saramago, o jornalismo e a quadratura do círculo

«Da informação objectiva pode dizer-se o mesmo que da quadratura do círculo (redução a um quadrado de área equivalente): que é uma impossibilidade» — a afirmação é de José Saramago e foi dirigida aos participantes num seminário organizado pela agência EFE, em Santander (Espanha), no âmbito dos Cursos de Verão da Universidade Internacional Menendez Pelayo. O texto que serviu de base à conferência então proferida pelo Prémio Nobel da Literatura foi publicado em 2004, por amável deferência do autor, na revista “Jornalismo & Jornalistas”. É esse texto que hoje reproduzimos, porque sintetiza com toda a clareza o pensamento de José Saramago sobre o jornalismo.

Informação
A quadratura do círculo

José Saramago

Da informação objectiva pode dizer-se o mesmo que da quadratura do círculo (redução a um quadrado de área equivalente): que é uma impossibilidade.

A impossibilidade da quadratura do círculo mediante a régua e o compasso foi demonstrada por Ferdinand von Lindemann em 1882.

Nesta minha comunicação tomarei a quadratura do círculo como a metáfora de uma objectividade também ela impossível de alcançar.

Se é assim, como creio, não temos mais que subjectividade em seus múltiplos aspectos: subjectividades ideológicas (incluindo as religiosas), subjectividades de classe, subjectividades de interesses pessoais, subjectividades de grupo, subjectividades de sentimentos, subjectividades culturais, subjectividades de costumes, etc., etc).

Factos são factos, ouvimos dizer frequentemente, como se de uma verdade irrespondível se tratasse, portanto deduzir-se-á que a objectividade consistiria, pura e simplesmente, em descrevê-los. Porém, que seria descrever, pura e simplesmente, um facto, quando a própria linguagem é um dos mais acabados exemplos de subjectividade?

Uma imagem limita-se a mostrar, portanto parece apresentar-se com um grau de objectividade maior que a palavra. Mas todos sabemos que determinados factores, como a luz, o ângulo de focagem ou a lente utilizada, podem subjectivar o que nos está a ser mostrado.

Cada facto resulta de factos anteriores, de cada facto resultarão inevitavelmente outros factos. A isto chamamos causas e efeitos. Cada facto contém um ou mais efeitos do passado e projecta uma ou mais causas para o futuro. Uma inventariação completa das causas e efeitos que envolvem o planeta estaria fora do alcance das capacidades humanas, incluindo as do mais poderoso computador existente ou a existir.

Considero o ponto de vista como uma questão fundamental em tudo quanto se refere à informação. A aparência física das constelações no espaço representa um caso típico de “visão” humana subjectiva. Observado de fora do sistema solar, o “desenho” da Ursa Maior seria muito provavelmente diferente. As estrelas não estão à mesma distância de nós, o que julgamos ver é, de alguma maneira, uma ilusão de óptica. Ao mudar o ponto donde se vê, mudará igualmente aquilo que é visto.

Por que pensamos o que pensamos? Por que pensamos como pensamos? Uma das mais interessantes e problemáticas definições de pensamento é aquela que diz ser ele o “conjunto de ideias próprias de uma pessoa ou colectividade”. Isto significa que pensamos o que há para pensar, que não podemos pensar fora do pensado. Pensamos o que a época em que vivemos pensa e é na linguagem dessa mesma época que expressamos a parte que do pensamento comum vamos conseguindo captar e assimilar. Ao legítimo argumento de que é possível pensar contra o que está, sempre se poderá responder que o que está, não se limita a estar, também nos marca o espaço do pensar…

Toda a informação é subjectiva e não pode evitar sê-lo. Subjectiva na origem (segundo a visão, particular ou induzida, que tivermos do facto que vamos informar), subjectiva na transmissão (por influência dos canais que o facto comunicado tiver de percorrer), subjectiva na recepção (não há exagero em dizer que a mesma mensagem terá tantos entendimentos quantos vierem a ser os seus receptores).

Todos sabemos que as coisas são assim e sempre assim foram, mas, enquanto o mundo for mundo, continuaremos a proclamar as nossas rectas objectividades e a recriminar os outros pelas suas suspeitosas subjectividades…

Que sentido real tem a expressão criadores de opinião? Em nome de quê, ou de quem, crê alguém que está capacitado para expressar opiniões destinadas não só a mero consumo público, mas também à formação das pessoas? Que espaço de liberdade resta ao consumidor de informação para poder elaborar opiniões que lhe sejam próprias? E quando suposer que está habilitado a expressá-las, serão elas realmente suas? Não serão, pelo contrário, na maior parte dos casos, um conjunto mais ou menos coerente de fragmentos das ideias subjectivas daqueles criadores de opinião que se habituou a ler ou a escutar?

Imaginemos dois jornais, um com posições e análises do que designamos por esquerda, outro com posições e análises do que chamamos direita. Os leitores de qualquer desses jornais tenderão a adoptar opiniões distintas e não raro contrárias àquelas que os leitores do jornal competidor defendem. Parece não se aperceberem, uns e outros, de que essas opiniões, no fundamental, não são a consequência lógica e natural das suas próprias reflexões, mas da acção de penetração que os denominados criadores de opinião vieram operando no seu espírito.

Evidentemente, ter opiniões a partir do nada não é possível. A questão não se encontra, portanto, no facto iniludível de que as nossas opiniões são o resultado da rede de informações em que nos movemos e orientamos, tal como a aranha se vai movendo e orientando sobre a teia. (Curiosamente, a mesma aranha que é produtora da teia não pode, salvo excepções, subsistir fora dela… A nossa teia chama-se opinião.)

A questão encontra-se, sim, no sector de afinidades subjectivas em que preferentemente circulamos e em que nos reconhecemos como nós próprios. É interessante notar como mais facilmente se muda de partido político que de clube desportivo… Ao mudar de partido político, a pessoa, se lhe perguntarem pelos motivos da mudança, apresentará razões que pelo menos aspirarão a ser objectivas, ao passo que o adepto do clube desportivo, imerso como está numa subjectividade total, não terá senão razões de ordem subjectiva para expressar. Isto no caso, não de todo provável, de ser capaz de formulá-las de um modo inteligível.

Tem-se falado muito das perigosas relações de cumplicidade que com demasiada frequência se observam entre a imprensa e os partidos políticos, essa espécie de concubinato que acabou por tornar certos jornais em órgãos difusores das mensagens e dos interesses do partido que, por uma razão ou outra, lhes é simpático. Porém, fala-se menos, ou nada, da corrente sanguínea, do cordão umbilical que geralmente liga a imprensa aos grandes grupos económicos, à banca, à grande indústria, ao grande comércio. Em algum caso, a simples ameaça de retirada da publicidade é suficiente para que nenhum jornal ouse denunciar abusos notórios, particularmente os que são cometidos na área laboral. Não deverá esquecer-se, a propósito, a velha frase que diz que “os jornais servem para vender clientes aos anunciantes”. E isto é tão certo para as caríssimas publicidades de página inteira como para os pequenos anúncios de contactos pessoais…

Também de vez em quando se reivindica a sonhada independência do jornalista. Trata-se de uma ficção tecida de boas intenções, com a qual se pretende amortecer os efeitos negativos da consciência infeliz no espírito dos profissionais da informação. Não sendo nenhum trabalho realmente independente, o dos jornalistas não podia ser excepção. Entre o chefe, que está ao lado, e o patrão, tantas vezes invisível, o jornalista leva o melhor da sua vida a apalpar o terreno instável que o sustém e a perguntar-se se estará fora ou dentro da verdade do dia. Creio que mais útil que o sempiterno e frustrante debate sobre uma mirífica independência do jornalista, seria examinar as franjas de independência relativa que lhe são consentidas, sem esquecer que eventuais aplausos internos dependerão, em muitos casos, mais de factores extra-jornalísticos do que da exactidão de uma informação ou de uma análise. O camaleonismo jornalístico, peste maior do nosso tempo, tem no que acabo de referir algumas das suas mais nefastas raízes. O cidadão comum expressa as opiniões do seu tempo, certos jornalistas talvez preferissem não ter nenhuma. Ser-lhes-ia menos doloroso que serem obrigados a ter aquela que a outros convém.

Falei da exactidão da informação. Permita-se-me, a propósito, um exemplo. Já se tornou um lugar-comum dizer que uma imagem vale por mil palavras. É uma ideia errada convertida em tópico quase indiscutível. As imagens necessitam muitas vezes um texto que as explique, quanto mais não seja para nos obrigar a reflectir sobre o sentido de algumas daquelas com que a televisão se alimenta e nos alimenta até ao paroxismo. Pudemos comprová-lo há anos quando assistimos, em directo, à queda de um ciclista numa das etapas da Volta à França. Assistimos ao acidente como se tivéssemos visto, numa rua, uma pessoa a ser atropelada por um automóvel. Com a diferença de que o tal automóvel só teria atropelado a pessoa uma vez… Com a diferença de que, como testemunha do acontecimento, não poderíamos – salvo se fôssemos sádicos – fazer voltar atrás o automóvel para repetir a cena do acidente… Ora, na televisão pudemos ver e rever trinta vezes a queda do infortunado ciclista. Graças às mil possibilidades da técnica, vimo-lo com zoom, sem zoom, em plongée, em contre-plongée, de um ângulo, do ângulo oposto, em travelling, de frente, de perfil. E também, interminável, ao ralenti… Vimos o corredor a cair da bicicleta, vimos a cara a aproximar-se pouco a pouco do chão, tocar o asfalto, torcer-se de dor…

De cada vez ficávamos sabendo mais das circunstâncias da terrível queda, do como e do porquê do acidente, mas a nossa sensibilidade ia-se tornando indiferente, cada vez mais difícil de penetrar. Olhávamos o que se passava com um distanciamento de cinéfilo dissecando uma sequência de um filme de acção. As repetições tinham acabado por matar a emoção.

A informação só nos tornará mais avisados e mais sábios se servir para nos aproximar dos outros seres humanos. Ora, com a possibilidade de aceder, de longe, a todos os documentos e materiais informativos de que precisamos, o risco de desumanização está a aumentar. E também o risco de ignorância. Doravante a chave da cultura não residirá na experiência e no saber, mas na habilidade para procurar a informação através dos múltiplos canais oferecidos por Internet. Poder-se-á ignorar o mundo, não saber em que universo social, económico e político se vive, e ao mesmo tempo dispor de toda a informação possível. A comunicação deixa de ser uma forma de comunhão.

Viremos a deplorar o fim da comunicação real, directa, de pessoa a pessoa? A nostalgia da velha biblioteca talvez não tarde: sair de casa, fazer o trajecto, entrar, cumprimentar, sentar-se, pedir um livro, segurá-lo nas mãos, sentir o trabalho do impressor, do encadernador, perceber o rasto dos leitores que nos precederam, as suas mãos, os dedos que viraram as páginas, tocar os sinais de uma humanidade que por elas passeou o olhar, de geração em geração…

Vemos concretizar-se o cenário de pesadelo anunciado pela ficção-científica: alguém encerrado no seu apartamento, isolado de todos e de tudo, na mais angustiosa solidão, mas ligado por internet e em comunicação com todo o planeta. O fim do mundo material, da experiência, do contacto directo. A dissolução dos corpos… É a realidade virtual. Mas a realidade virtual, recordemo-lo, não nasceu ontem, tem mais de um milhão de anos se, como é provável, o Homo erectus já sonhava…

Impressionados, intimidados pelo discurso modernista e tecnicista, os cidadãos, na sua maior parte, capitulam. Aceitam adaptar-se ao novo mundo que nos anunciam como inevitável. Renunciaram aos seus direitos e aos seus deveres. Em particular, ao dever de protestar, de insurgir-se, de rebelar-se. Como se a exploração tivesse desaparecido e a manipulação dos espíritos tivesse passado a ser um negócio de anjos.

Disse, no princípio desta comunicação, que, metaforicamente, a informação, tal como a quadratura do círculo, é impossível. No caso do círculo a culpa tem-na aquele malvado número pi, esse 3,14 que já foi calculado com até 1 milhão de algarismos decimais e que, para nosso desespero, se prolonga infinitamente. Também para a informação há um número pi, mas esse exige-nos que todos os dias lhes acrescentemos decimais. Cada um deles representará mais uma parcela de verdade, de responsabilidade, de respeito, de ética, de dignidade. Já sabemos que os números pis, tanto o do círculo como o da informação, não têm fim, mas penso ser vosso dever e vosso signo avançar sem pausa nem descanso por essa linha infinita. É o andar que faz o caminho, disse Antonio Machado, que foi mestre do humano. Eu, que ao seu lado não passo de aprendiz, contento-me com desejar-vos uma boa viagem.

Destaques

Factos são factos, ouvimos dizer frequentemente, como se de uma verdade irrespondível se tratasse, portanto deduzir-se-á que a objectividade consistiria, pura e simplesmente, em descrevê-los. Porém, que seria descrever, pura e simplesmente, um facto, quando a própria linguagem é um dos mais acabados exemplos de subjectividade?

Considero o ponto de vista como uma questão fundamental em tudo quanto se refere à informação.

Ao legítimo argumento de que é possível pensar contra o que está, sempre se poderá responder que o que está, não se limita a estar, também nos marca o espaço do pensar…

Que sentido real tem a expressão criadores de opinião? Em nome de quê, ou de quem, crê alguém que está capacitado para expressar opiniões destinadas não só a mero consumo público, mas também à formação das pessoas?

Não sendo nenhum trabalho realmente independente, o dos jornalistas não podia ser excepção. Entre o chefe, que está ao lado, e o patrão, tantas vezes invisível, o jornalista leva o melhor da sua vida a apalpar o terreno instável que o sustém e a perguntar-se se estará fora ou dentro da verdade do dia.

A informação só nos tornará mais avisados e mais sábios se servir para nos aproximar dos outros seres humanos.

Vemos concretizar-se o cenário de pesadelo anunciado pela ficção-científica: alguém encerrado no seu apartamento, isolado de todos e de tudo, na mais angustiosa solidão, mas ligado por internet e em comunicação com todo o planeta.

“JJ” n.º 20 Out/Dez 2004