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ERC legaliza mais um site que tinha classificado como de desinformação

28 de Janeiro de 2020


Em abril de 2019, a ERC referiu o site “Bombeiros 24” como de desinformação. Pouco tempo depois, porém, propôs-lhe a legalização e legitimação, via registo como de “informação geral”. É o segundo caso identificado pelo “DN”, depois do “Notícias Viriato”. BE requereu audição urgente da ERC no Parlamento. (Fernanda Câncio)

» ERC justifica legalização com argumentos burocráticos

“Um website já identificado publicamente como produtor e difusor de desinformação, o “Bombeiros 24”.

Esta frase figura numa deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social de abril de 2019 sobre um outro site de desinformação. Mas seis meses depois o mesmo regulador, através do seu departamento de registos, contactou o site Bombeiros 24, que num trabalho de novembro de 2018 do DN sobre fake newsera referido como “um dos mais bem sucedidos sites de desinformação em Portugal”, convidando-o a proceder ao respetivo registo, ou seja, para que se “legalize” e ganhe o selo de acreditação da ERC.

No final do ano, o site já podia ser encontrado na lista de 2466 publicações registadas pelo regulador, com o número 127381 e classificado como “de informação geral”, embora o registo seja ainda “provisório”.

Para que o registo passe a “definitivo”, é necessário apenas, de acordo com o departamento de registos da ERC, que num prazo de 90 dias faça “prova de que está a editar”, ou seja, ativo. Isto após iniciar o processo com o envio do estatuto editorial e a identificação do responsável, proprietário e morada, pagando os emolumentos previstos na lei.

Aparentemente, ter a ERC anteriormente identificado o site Bombeiros 24 como “de desinformação” não constituiu óbice à proposta de registo. Proposta que foi efetuada pelo regulador depois de lhe chegarem participações sobre o facto de o Bombeiros 24 estar a funcionar sem ele – de acordo com a lei de Imprensa, todas as publicações têm, antes do início de atividade, de efetuar registo na ERC.

Mas tal só faz sentido, adverte a deliberação da ERC já citada, se a publicação em causa demonstrar “a intenção de atuar como media”. Esta intenção revela-se, explica a ERC, “através da existência, por exemplo, de métodos de trabalho típicos dos media, pelo respeito das normas profissionais, pela existência de dispositivos de comunicação de massa e pela própria apresentação como media”. Só essa circunstância pode “levar a ERC a convidar estas novas realidades, que não cabem na categorização clássica, ao registo nesta entidade.”

“Um falso jornal de crime” que não tem nada a ver com bombeiros

Métodos de trabalho típicos de media? Respeito pelas normas profissionais? Vejamos o que diz sobre o Bombeiros 24 o trabalho sobre sites portugueses de fake news e desinformação publicado em novembro de 2018 no DN.

“A mentira começa no título. Um dos mais bem-sucedidos sites de desinformação em Portugal chama-se Bombeiros 24. Mas não tem nada que ver com bombeiros. Quem pesquisa este nome no Google encontra um anúncio a um serviço falso: “Bombeiros 24 horas”. Se carregar no link, em vez de uma linha SOS, ou de um contacto, encontra apenas um site. E de desinformação.” Era assim que começava o citado trabalho do DN sobre sites portugueses de fake news e desinformação, publicado em novembro de 2018.

Assinado pelo grande repórter do DN Paulo Pena, que em outubro publicou o livro Fábrica de Mentiras/Viagem ao mundo das fake news , o texto prossegue: “No último mês, esta página conseguiu ter mais de 939 mil partilhas dos seus textos no Facebook. Nessa rede social, a página tem um nome ainda mais enganador: Bombeiros Portugueses. Tem quase 300 mil seguidores. Gente real, educada, preocupada. Mas o conteúdo não deixa muitas dúvidas sobre o que faz na realidade: desinformação.”

E explica que “a maior parte da desinformação deste site” surge sob a forma de “um falso jornal de crime. Nos seus links várias pessoas “perdem a vida”, outras são apanhadas a traficar droga, outras desaparecem, outras fingem “ter cancro”, há gatos torturados e asfixiados, crianças vítimas de abuso em hospitais. “Mãe perde a própria vida”, “homem perde a vida”, “agente da PSP tira a sua vida”, são alguns dos títulos desde o início de novembro.”

Nem nome de responsáveis, nem morada, nem telefone: total anonimato

Fruto da sua situação de site com registo provisório na ERC, o Bombeiros 24 apresenta agora o obrigatório “estatuto editorial” no qual se identifica como “uma publicação periódica online de periodicidade diária que se afirma como independente, livre e isenta de qualquer poder político, doutrina religiosa ou interesse económico”.

Uma publicação na qual, assevera-se, “todos os seus colaboradores respeitam e orientam-se pelos princípios e valores espelhados nos documentos que regem a atividade jornalística, como sejam o Código Deontológico, o Estatuto do Jornalista e a Lei de Imprensa, entre outros”, e que “assume o dever de informar com responsabilidade e transparência os seus leitores, respeitando a sua boa fé, e defende o valor intrínseco da notícia, subordinando-se à verdade dos factos.”

Isto sem que exista, que se saiba, qualquer jornalista responsável pelos conteúdos. Porque a lei, como o DN já sublinhou este domingo no artigo sobre o registo pela ERC do site Notícias Viriato, prescreve que as publicações classificadas como “de informação” têm de observar as normas éticas e deontológicas do jornalismo mas não impõe que nelas trabalhem jornalistas.

O Bombeiros 24 certifica ainda ter “o intuito de contribuir para uma opinião pública informada, consciente e com sentido crítico”, abordando “temas de índole nacional e internacional, estimulando a troca de informação entre os seus leitores e promovendo um debate de ideias inclusivo e plural.”

Porém, como sucede com o site Notícias Viriato, classificado pelo coordenador do Medialab do ISCTE como “de propaganda“, mas que tem desde novembro um registo definitivo na ERC, a esmagadora maioria dos textos publicados pelo Bombeiros 24 não distinguem opinião de factos e parecem basear-se em produção de outros sites ou de verdadeiros órgãos de comunicação social.

Com uma particularidade: não só não costumam ser assinados como o site não apresenta nenhuma pista para quem são os seus responsáveis, nem onde está sediado – algo que é obrigatório em publicações registadas e “legítimas”. Como será que se assegura “o dever de informar com transparência” se nem a autoria do site se revela?

Na verdade, o Bombeiros 24 é neste momento, para quem lhe acede, um site completamente anónimo, apesar de ter já registo provisório e apresentar no site da ERC um responsável – André Alexandre Nunes da Conceição, que é encontrável numa única entrada no Google como aluno de cinema na Universidade da Beira Interior – e uma morada em Belmonte, Rua Chafariz do Areal, 44.

Isso mesmo notava Paulo Pena no DN em novembro de 2018: “De quem é a página Bombeiros 24? É um segredo muito bem guardado. O IP do site é o 149.202.52.180 e está registado em França, no servidor OVH SAS, em Roubaix. Toda a informação sobre os seus donos e autores é secreta.”

Já não, uma vez que agora conhecemos o nome da pessoa que se assume como seu responsável perante a ERC. Mas olhemos de novo para a deliberação do regulador que temos vindo a citar. Esta, em relação a outro site de características muito semelhantes às do Bombeiros 24, diz: “Em nenhuma parte do sítio online é indicado o proprietário, sede, diretor ou autoria dos conteúdos, pelo que se deduz que o anonimato seja um dos valores prezados pelos seus mentores. No entanto, não é clara a intenção por detrás deste anonimato. Poderá tratar-se de um indício de que a credibilidade e a responsabilidade não poderão ser apuradas.”

Poderá realmente. O que, sublinha a ERC, levanta também “questões de jurisdição”: “Tendo em conta que não é disponibilizada qualquer informação acerca da propriedade ou da autoria dos seus conteúdos, havendo lugar à comissão de crimes ou de ilícitos através daquele website (crimes de ofensa a direitos fundamentais ou proteção de menores, por exemplo), as autoridades deparam-se com a dificuldade de identificar os seus autores. Coloca-se aqui a questão de o alojamento das páginas ser efetuado em servidores internacionais e por vezes sob identidades falsas dos seus proprietários.”

Num caso de desinformação ERC remete para MP, noutro propõe legalização

Colocam-se ainda outros problemas, relacionados com o financiamento, como releva Paulo Pena no referido artigo no DN: “Depois de muita pesquisa, é possível saber, pelo menos, o método que garante o êxito e o financiamento desta página. Sendo um dos sites mais populares nas redes sociais portuguesas, o Bombeiros 24 tem uma conta aberta nos serviços de publicidade do Google (com esta identificação: pub-9747752864249330). A empresa norte-americana não revela os contactos ou identidade dos seus clientes. Mas é possível saber que o mesmo gestor deste site português recebe, pela mesma conta, dinheiro de publicidade para um segundo site português. Chama-se Bilbiamtengarsada, assim mesmo, e tem 286 mil seguidores só no Facebook. É, ao mesmo tempo, um meio de replicar a desinformação da página dos falsos bombeiros e um lucrativo sistema de financiamento dos donos de ambos os sites.”

Apesar de a lei prever que as publicações tenham de revelar a respetiva estrutura acionista e os fluxos financeiros que as alimentam, no caso daquelas registadas em nome individual e que não tenham contabilidade organizada – como é o caso do site Notícias Viriato, registado em nome de um estudante universitário de 20 anos, e parece ser o do Bombeiros24, aparentemente também registado em nome de um estudante universitário – essa obrigação não se aplica.

No caso da deliberação da ERC sobre o site Gazeta Politica, que respondia a uma participação na qual se referia o facto de aquele site “ser dedicado à publicação de “notícias falsas” e de não indicar qualquer identificação”, sublinha-se, para além do já mencionado anonimato e de não se poder falar de um verdadeiro “serviço de media”, ter “formas de financiamento desconhecidas”, não existindo “publicidade, nem assinaturas para acesso aos conteúdos.”

A conclusão é de que “o atual quadro legislativo e regulatório da ERC não lhe permite ter intervenção ao nível do website em análise. No entanto, reconhece-se que este pode ser facilmente confundível pelos utilizadores que lhe atribuam credibilidade de órgão de comunicação social noticioso.”

Assim, a ERC decidiu que “assiste razão ao participante por se verificar tratar-se de um site que divulga desinformação sob a capa de informação fidedigna e a coberto do anonimato, e, reconhecendo não dispor “de competências específicas para intervir ao nível deste website, por não se tratar de um órgão de comunicação social”, “remeter ao Ministério Público a participação para os fins tidos por convenientes.”

Como se constata, no caso do Bombeiros 24, apesar de o ter identificado como veiculador de desinformação, o regulador decidiu, ao invés de o remeter para o MP, propor-lhe a legalização.

O DN requereu à ERC, esta segunda-feira de manhã, esclarecimentos sobre esta situação, mas não obteve resposta até ao fecho deste texto. Entretanto, e em face do noticiado pelo DN, o grupo parlamentar do BE requereu “a audição, com caráter de urgência, do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, para prestar esclarecimentos sobre o registo de sites de desinformação como órgãos de comunicação social fidedignos.” Considerando que esta “atuação da ERC como flagrantemente contraditória com as suas obrigações”, o BE quer que esta dê a conhecer ao parlamento, “urgentemente, que critérios está a aplicar nesta matéria.”

Fernanda Câncio – “Diário de Notícias” 28 janeiro 2020

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