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O FB deu o mundo aos ditadores

Falemos, pois, de campanhas de desinformação. Na semana passada, numa conversa de Facebook, alguém apontava o dedo para a minha “ingenuidade”. Como era possível que não percebesse que Greta Thunberg era não sei o quê (coisa muito negativa)? E a prova estava à vista de todos: aqueles cabelos loiros, aquelas tranças… tal e qual uma criança nazi tirada de um cartaz de Goebbels — adaptada a esta época da net. (Suspiro de saturação) Pelos vistos é preciso fazer um balanço sobre “quem manipula quem”, deliberadamente, e quem cria teorias de conspiração. (Luís Pedro Nunes)

Vamos lá ver: as redes sociais são hoje, de facto, usadas em dezenas de países para manipular de forma sistemática os cidadãos, espalhar desinformação, desacreditar oponentes políticos e enterrar opiniões de outros. Facto: são um braço para atacar a democracia. E se tivermos que posicionar as redes sociais em termos políticos-BD-Marvel, teríamos que colocá-las do lado dos vilões, dos regimes ditatoriais. Ou que anseiam sê-lo. E não é um ‘achismo’. São dados, senhores, são dados.

O Internet Institute da Universidade de Oxford publicou na semana passada o “The Global Desinformation Order — 2019 Global Inventory of Organized Social Media Manipulation”, em que conclui que há pelo menos 70 países que têm campanhas de desinformação políticas ativas — o que é mais do dobro do que acontecia em 2017. O que demonstra a rapidez com que este ecossistema se altera. E o que também prova que o alegado esforço dos representantes destas empresas (Facebook, Twitter, etc.) para pôr cobro a campanhas de difamação, campanhas falsas organizadas que têm apenas como intuito desacreditar opositores, têm resultado patavina. Bem pode ir Zuckerberg e o barbichas do Twitter garantir publicamente que estão a sangrar o sistema. Este estudo é muito bem feito. Enumera os países, estratégias, ferramentas e táticas usadas. E a situação é a seguinte: os governos, os partidos e grupos extremistas não têm escrúpulos em usar ciberexércitos, bots, roubar contas, o que for para atingir os seus objetivos. E os facebuques nas suas ações publicitadas de limpar a sua reputação fixam-se em conteúdos de anúncios. Ou, por vezes, apagam umas contas. O que é a ponta do icebergue.

Assim, temos megaescândalos já denunciados e que pusemos como coisas do passado, e descansámos a consciência. Já passou. Falo do Cambridge Analytica, que teve comprovada influência no ‘Brexit’ e na eleição de Trump. Quanto, nunca saberemos. Mas na Europa foram detetadas campanhas de manipulação em Espanha, Itália, Suécia, Áustria, Grécia, Hungria, mas também na Venezuela, Colômbia, Brasil. Enfim, nada que não tivéssemos intuído. Mas são 70 países. No estudo estão elencados os objetivos das campanhas e os tipos de redes. No Brasil, por exemplo, é quase exclusivamente WhatsApp, não utiliza agências governamentais, mas empresas contratadas e cidadãos privados, contas falsas são mantidas por bots, humanos e cyborgs e as mensagens são de apoio/ataque, oposição/distração/cria­ção, divisão/supressão de opiniões da oposição. E continua com as estratégias de comunicação, tamanho das equipas, orçamento ao dispor, se estão em permanência ou se são chamadas apenas em momentos-chave.

Deu para apanhar o clima da coisa? Bom, e depois há países que não usam esta ferramenta apenas internamente. Aliás, sabemos perfeitamente quem são: China, Rússia, Arábia Saudita, Venezuela, Irão, Paquistão e Índia. Nada de novo. Mas para se ter uma ideia, os autores alertam que isto já não é o trabalho de adolescentes numa aldeia que fazem algo para ganhar uns cêntimos em clickbait. A China tem equipas regionais e nacionais, pelo que a capacidade de mobilização de um ciberexército organizado pode chegar aos dois milhões, sendo que tem uns 300 mil sempre no ativo. Uma loucura. Para mais, treina estrangeiros, como fazia com combatentes de países amigos no tempo do colonialismo. Aconteceu recentemente com a Etiópia, que teve um pequeno ciberexército em ação para esmagar a aposição.

Isto não é ser fatalista nem catastrofista. Nem delírio. Recusar ver os dados é negar a realidade. Não vale a pena chorar sobre a eleição de Trump ou sobre o ‘Brexit’. Os autores do estudo garantem que esta tendência continuará. E como esta força vem do poder instalado, é óbvio que nada será feito para o contrariar. As empresas donas das redes sociais nunca irão admitir que estão a colocar a democracia em causa, tanto mais que tal iria implicar mudar o modelo de negócio e alterar por completo os algoritmos. Algo que não vão fazer por vontade própria. E avisam que o “Team Trump” está a preparar-se desde o dia da tomada de posse para o primeiro momento da campanha-2020. E desta vez têm experiência, ainda menos escrúpulos e os meios da Casa Branca para atacar o oponente. O aviso está feito.

As redes sociais são uma grande ideia. Foram, aliás, vistas como algo que ia servir para libertar o mundo das trevas e espalhar a ideia de democracia onde ela nunca tinha chegado e outros amanhãs que iriam cantar no YouTube. Eis o problema: não é isso que está a acontecer. São os bad guys que as estão a usar para manipular, calar a oposição e espalhar desinformação. Ou isso ou sou um tonto que não percebe que é o Goebbels que faz as tranças de Greta.

(Luís Pedro Nunes – “Expresso” Revista – 4 outubro 2019)