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Entãoeismo (Paulo de Morais)

O espaço público nacional é doentio, o nível de discussão é paupérrimo. Os actores centrais da vida pública dão-se mal com a liberdade de expressão. Quando são alvos de críticas, saudáveis no espaço democrático, nunca as assimilam, jamais assumem os seus erros. Contra-atacam quem critica, tentam silenciar o debate.

Os exemplos perpassam todas as facetas da vida nacional, do sindicalismo ao futebol, dos negócios à política e à vida social. Quando os motoristas de camiões com matérias perigosas se indignam com um salário base de cerca de seiscentos euros – logo um coro de críticas surge: “então, e os trabalhadores portuários?”, “então, e os da construção civil?”. A expressão “então e?” significa, implicitamente, que nenhuma situação se deve resolver, uma vez que há quem aguente condições iguais ou ainda piores. E, de facto, sempre há.

No mundo opaco do futebol, este tipo de argumentos atinge o auge. Se o Benfica é acusado de influenciar árbitros, com arguidos no processo “e-toupeira”, logo um coro de indignados benfiquistas se levanta: “então e o Futebol Clube do Porto”, com o caso da “fruta” no processo “Apito Dourado” (aludindo ao eventual fornecimento de prostitutas a árbitros, a troco de resultados desportivos favoráveis).

Na luta política, quase todos os argumentos revestem esta forma. Quando António Costa é acusado de infligir aos cidadãos e empresas a maior carga fiscal de que há memória, logo os zelotas defensores do actual governo vêm recordar o “brutal aumento de impostos” de Passos Coelho nos tempos da crise. “Então, e” no tempo do Passos Coelho não era igualmente mau ou até pior?

Quando as acusações são sobre corrupção ou tráfico de influências, a pobreza não poderia ser maior, os partidos apenas passam culpas para o adversário, jamais corrigem os erros ou sequer assumem os seus pecados. As deputadas socialistas Sónia Fertuzinhos ou Elza Pais vivem em Lisboa, mas apresentam pedidos de ajudas de custo no Parlamento como se vivessem em Mangualde ou Guimarães. O Partido Socialista assume os erros? Demite-as de deputadas? Não, há um coro de militantes socialistas que vem alegar que o social-democrata Duarte Pacheco faz o mesmo e até Pedro Soares, do Bloco de Esquerda, vive em Lisboa e dá como morada de residência a cidade de Braga. No fundo, a resposta a estas situações é uma versão actualizada do ditado português “Ou há moralidade ou comem todos”. A nível de corrupção nas autarquias, também não há vontade de actuações correctivas, apenas desculpabilização em função dos crimes alheiros. Álvaro Amaro, dirigente nacional do PSD é arguido por corrupção, enquanto presidente de Câmara da Guarda? Não tem problema. Então e os socialistas Joaquim Couto de Santo Tirso e Gomes da Costa de Barcelos também não foram detidos?

E mesmo nos casos mais graves que empobreceram significativamente o País, como a corrupção no Banco Português de Negócios ou no Banif, nas Parcerias Público-Privadas, ou até na Operação Marquês – os Partidos desculpabilizam os seus crimes com os crimes dos seus opositores políticos. Sócrates assinou contratos ruinosos nas PPP rodoviárias? Não tem mal, Cavaco Silva também assinou o contrato da Ponte Vasco da Gama, igualmente ruinoso, com a Lusoponte. Vara está preso por corrupção? O PS contrapõe (e desculpabiliza-o) com o caso Oliveira e Costa que foi condenado e – pior! – nem foi sequer preso. O social-democrata Marques Mendes trafica influências e manipula a opinião pública na SIC? Então e o socialista Jorge Coelho que trafica ainda mais influência e faz o mesmo na TVI?

Num cenário de permanentes acusações mútuas, o espaço público político-partidário tornou-se deprimente. Os principais actores partidários já abdicaram de apresentar alternativas, desistiram até de convencer os eleitores das virtudes das suas propostas. Têm por único objetivo transmitir à opinião pública uma só ideia, a de que “os nossos adversários ainda conseguem ser piores do que nós”. E, para nosso mal, habitualmente têm razão!

Paulo de Morais
Presidente da Frente Cívica
“Público” 26 agosto 2019