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Entre o exemplo e o exemplar (Manuel Carvalho da Silva)

26 de Agosto de 2019


A solução política e de Governo que tivemos na legislatura que agora está a terminar tem merecido a atenção de atores e estudiosos da política em várias latitudes, em particular em Espanha, desde que a Direita foi afastada do Governo e mais agora, quando se aproxima a data limite para poder haver novo Governo ou novas eleições.

Recentemente fui interrogado por uma jornalista daquele país muito empenhada na análise do “caso português”. À pergunta inicial sobre se via a “geringonça” como exemplo que os espanhóis poderão seguir, comecei por responder que a solução portuguesa pode ser tomada como exemplo conjuntural – depois de considerado o contexto espanhol, bem diferente do português – mas está muito longe de ser exemplar quanto aos resultados gerais obtidos, essencialmente numa perspetiva estratégica.

A solução encontrada foi exemplar no quadro conjuntural em que foi construída e constituiu uma experiência irrepetível, até pelo seu ineditismo, que obrigou a uma urdidura política complexa e criativa. Os portugueses ganharam bastante com esta solução, embora as políticas seguidas apenas tenham propiciado um travão ao fundamentalismo austeritário e permitido pequenos passos de reposição de alguns direitos e rendimentos a uma parte significativa dos cidadãos. Uma segunda “geringonça”, que se deseja, só existirá se, nas eleições de 6 de outubro, for vencido o centrão de interesses, que tem acumulado incomodidades ao longo dos últimos quatro anos. Partes deste centrão raramente apostaram tantas fichas na vitória do Partido Socialista com maioria absoluta, como estão a apostar para as próximas eleições. Vencido esse obstáculo, o que é possível, colocar-se-á um cenário bastante diferente do de 2015. Serão necessários compromissos bem explicitados sobre questões estratégicas que estão por resolver. Enumero três e não exponho nada sobre outras três que também são pesadas: a gestão da dívida, a questão territorial, as formações e qualificações.

Primeira, a defesa e modernização do Serviço Nacional de Saúde, recuperando capacidades humanas, técnicas e organizacionais, capacitando e valorizando os trabalhadores, modernizando a gestão, recuperando e articulando valências que só o SNS pode ter ao serviço de todos. A aplicação da nova Lei de Bases deverá ser muito bem orientada.

Segunda, a área do trabalho, onde temos há demasiado tempo uma estagnação dos salários reais com muitos trabalhadores a perderem rendimento face aos custos da habitação e outros, uma distribuição funcional do rendimento escandalosamente desequilibrada e muito emprego em setores de baixa produtividade.

Terceira, a imperiosa mudança do perfil da nossa economia, hoje dominada pelo turismo e pelo imobiliário e, na maioria dos setores, por políticas de trabalho e de emprego assentes em baixas remunerações e no incumprimento de obrigações legais perante a Segurança Social e o Fisco. E já ressurgiu o espantalho de “nova crise” visando recolocar os custos do trabalho como variável de ajustamento da economia. Marcelo Rebelo de Sousa já o fez na justificação da promulgação do mais recente pacote laboral.

É tempo de um forte combate pela criação de condições para uma segunda “geringonça”, em novo contexto e condições, e de se propor desde já acordos programáticos mais detalhados e exigentes.

Manuel Carvalho da Silva
Investigador e professor universitário
“Jornal de Notícias” 24 Agosto 2019

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