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Coisas de frades (Nuno Santa Clara)

O anticlericalismo tem sido uma constante em Portugal, com especial virulência nos meios liberais e republicanos dos séculos XIX e XX. Mas mesmo os mais verrinosos separavam religião de anticlericalismo, como Guerra Junqueiro; o autor de “A velhice do Padre Eterno”, onde consta a virulenta Ladainha Moderna, escreveu também estes versos:

“Tenho uma crença firme, uma crença robusta,
Num Deus que há de guardar por sua própria mão
Numa jaula de ferro a alma de Locusta,
Num relicário de oiro a alma de Platão”.

Não é um fenómeno unicamente português. Desde sempre, em toda a Europa, e não só, se deram alfinetadas no meio clerical. Um certo aproveitamento da questão da pedofilia na Igreja Católica tem origem neste resiliente sentimento.
Walter Scott, o grande escritor romântico inglês, deu um exemplo deste sentimento com a figura de Frei Tuck no seu célebre romance Ivanhoe. O cavaleiro (Ricardo I Coração de Leão, disfarçado) chega ao ermitério do frade e é recebido com um prato de ervilhas secas e água; depois de ganha a confiança, lá veio um naco de carne assada, com bebida à descrição. Não deixou Frei Tuck de ser um herói até aos dias de hoje (mesmo adulterado por muitas adaptações). Ao fim e ao cabo, estava a pôr em causa o sistema feudal que proibia aos plebeus a caça nas terras senhoriais.
Entre nós ficou famoso Frei Tomás, quer tenha existido ou não. O que dele ficou foi o velho aforismo: “Bem prega Frei Tomás; faz o que ele diz, não faças o que ele faz”.
Isto tanto pode ser considerado como uma denúncia do farisaísmo, do cinismo ou da corrupção, como apenas a constatação da fraqueza humana.
Certo é que hoje, em plena Sociedade da Informação, somos bombardeados pelo “faz o que eu digo”, sem grandes hipóteses de conferir se isso corresponde ao “faz o que eu faço”.
Mas a constatação diária é de que uma coisa raramente tem a ver com outra. Um Presidente da nossa República, que teve a ideia de indagar por onde andavam algumas prometidas realizações, foi alcunhado de “Cobrador de Promessas Eleitorais”. Este neologismo deve ser grave e insultuoso, já que aparentemente ninguém mais caiu nessa…
Uma forma airosa de evitar embaraços é evitar temas quentes, ligados à atualidade, e rememorar passados gloriosos. Foi o que fez Donald Trump neste último 4 de Julho, recordando e enaltecendo ilustres americanos, desde os Pais Fundadores à atualidade. Organizou um desfile dos meios aéreos do Exército, Marinha, Força Aérea, Fuzileiros e Guarda Costeira, bem sincronizado com o texto.
O Mafarrico, sempre presente, fê-lo dizer, referindo-se à Guerra da Independência (1775-1783) que “o nosso exército… tomou as muralhas, assumiu os aeroportos, fez tudo o que tinha que fazer e, em Fort McHenry, sob o clarão vermelho dos foguetes, nada tinha além da vitória.” Forte tirada heroica, mas… aeroportos no século XVIII? E a batalha de Fort McHenry foi durante a Guerra Anglo-Americana de 1812…
Também disse que os Marines tinham hasteado a bandeira americana nas areias negras de Iwo Jima, quando o fizeram no cimo do Monte Suribachi, na mesma ilha. Aliás, o monumento existente em Washington alusivo ao feito foi várias vezes apresentado na TV durante a cerimónia.
Simples detalhes, talvez. Mas, para quem não é forte em história (mesmo ao nível do ensino secundário) convém não falar sem um papel ou teleponto, ainda que se trate de um improviso estudado.
Pior foi quando incitou os jovens a alistarem-se nas Forças Armadas. Não faltou quem se lembrasse que Donald Trump recorreu a vários adiamentos da incorporação, até a Guerra do Vietname acabar.
Ou seja, tal como Frei Tuck, a fachada não correspondeu à prática, e, tal como Frei Tomás, houve uma discrepância entre “dizeres” e “fazeres”.
Deste modo, podemos criar um novo ditado: “Bem prego ao meu país; faz o que eu digo, não faças o que eu fiz”


Nuno Santa Clara