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Sete respostas para perceber a sentença dos emails que condenou o FC Porto a pagar 2 milhões ao Benfica

8 de Junho de 2019


Juiz considerou uma “missão impossível” calcular os danos invocados pelo Benfica e reduziu de 17 para 2 milhões a indemnização que o FC Porto terá que pagar. Foram revelados 60 segredos comerciais. (Sónia Simões)

É a primeira decisão saída de um tribunal sobre o caso dos emails do Benfica que começaram por ser divulgados no Porto Canal e que deram origem a vários processos-crime. O processo cível, que correu num tribunal do Porto, deu um empate aos dois grandes clubes: por um lado deu razão ao Benfica, que pedia uma indemnização de 17 milhões de euros pelos danos causados à SAD, enquanto empresa e marca, com aquilo que considera ter sido concorrência desleal e a divulgação de 60 segredos comerciais. Por outro, o presidente e os administradores da SAD do Porto foram absolvidos e a indemnização foi reduzida para cerca de dois milhões de euros, por ser uma “missão impossível” calcular alguns dos danos.

O Observador descodifica a sentença de 140 páginas que foi conhecida esta sexta-feira e da qual o FC Porto vai recorrer. Desconhece-se para já se o recurso para o tribunal superior tem efeitos suspensivos e se o clube não tem que pagar já a indemnização. Mas é certo que este valor, a ser confirmado, poderá ser mais elevado. É que o juiz também determinou que na altura do pagamento da indemnização serão calculados os valores dos danos causados ao Benfica pela divulgação de alguns segredos comerciais, nomeadamente informação sobre jogadores.

Até lá, há pelo menos cinco processos-crime abertos na sequência destes emails. Um deles, que ganhou o nome de e-Toupeira, que envolve o assessor jurídico do Benfica Paulo Gonçalves, começa a ser julgado já em setembro. Em princípio arranca sem envolver a SAD do Benfica, a menos que o tribunal da Relação de Lisboa se pronuncie entretanto sobre o recurso do Ministério Público, que não concordou com o despacho de pronúncia que ilibou o clube.

Neste caso concreto, como o próprio juiz explica na sentença, não está em causa se a divulgação dos emails foi ou não ilícita, mas sim a apropriação de segredos dos negócios do Benfica por parte do FC Porto, mais concretamente do diretor de informação e comunicação do clube, Francisco J. Marques. “Não basta a crença dogmática de um adepto, mas também não é necessária a certeza de um comité de cientistas de ciências exatas para demonstrar algo em tribunal”, chega a escrever o juiz José Rodrigues da Cunha.

De referir que neste processo o Benfica nunca alegou que o conteúdo dos emails divulgados não era verdadeiro. Mas que apenas fora deturpado. Na sua decisão, o juiz lembra que nenhuma das partes pediu que este processo cível fosse interrompido por causa dos processos-crime em curso. Mais: o magistrado considera que os emails, que divulgaram 60 segredos comerciais, como “meio de prova isolado, descontextualizado, e nalguns casos com palavras ambíguas e polissémicas, não é suficiente para uma condenação penal ou civil”.

1 – O que pedia o Benfica?

A SAD do Benfica pedia ao Futebol Clube do Porto, à SAD do Porto, ao FCP Media, que detém o Porto Canal, e ao diretor de informação e comunicação do clube, Francisco J. Marques, uma indemnização de 17 milhões de euros por todos os danos que a divulgação dos emails da direção do clube causaram desde abril de 2017, durante a emissão do programa Universo Porto — da Bancada. Só pelos custos e despesas que o Benfica teve para tentar “mitigar” as consequências da divulgação dos emails, o pedido de indemnização correspondia a 784,6 mil euros, uma vez que a SAD foi obrigada, após a avalanche de informações publicadas, a fazer um reforço informático, na equipa de comunicação, de marketing e, mesmo, no departamento jurídico.

Na ação assinada pela defesa do Benfica, a SAD pedia ainda que o FC Porto se abstivesse de aceder aos seus emails ou qualquer tipo de comunicações privadas e que retirasse e apagasse de todos os suportes (digitais ou em papel) todas as comunicações a que acederam e que publicaram.

2 – Quais as consequências que o Benfica diz que sofreu?

O Benfica diz que o comportamento do Fc Porto pôs em causa todos os princípios, normas de lealdade e usos honestos de concorrência. Que ao divulgar correspondência privada trocada entre os órgãos sociais e os administradores, deturparam a informação que ali constava. Por outro lado, acabaram por identificar os seus principais patrocinadores, assim como outros segredos empresariais que puseram em causa o os valores mobiliários da própria SAD, por exemplo. “A divulgação de correspondência e comunicações privadas resulta de uma estratégia concertada do Grupo Futebol Clube do Porto, que tem como objetivo imediato a descredibilização desportiva e social e o enfraquecimento económico das requerentes”, dizem.

Na sentença conhecida esta sexta-feira, tanto a SAD do Benfica como o juiz falam da campanha Red Pass como uma resposta à divulgação desses emails. Tal campanha, alega a defesa do Benfica, é por si só o reflexo de um dos danos que o Benfica diz que o FC Porto causou à SAD, enquanto empresa e marca. “É desonrosa a associação das Autoras a atividades de bruxaria para obtenção de resultados desportivos, constituindo tal episódio uma fonte adicional de descredibilização junto de patrocinadores e de outros parceiros, tais patrocinadores encaram com grande incómodo a associação a parceiros que, direta ou indiretamente, se entregam a atos de bruxaria”, lê-se na sentença.

O Benfica diz que enfrentou acusações constantes de factos ilícitos e descredibilizadores feitas pelos réus, que as acusam de corrupção, tráfico de influência, manipulação e instrumentalização de instituições desportivas e de arbitragem. E que foram julgados na praça pública. Como consequência, o Benfica diz que o seu bom nome comercial foi afetado e que tal se refletiu no desempenho comercial do Grupo Sport Lisboa e Benfica,  assim como na sua posição económico-financeira.

“As ações da SLB SAD, admitidos à cotação em bolsa de valoressofreram variações de cotação, algumas das quais negativas em altura coincidente com a divulgação de alguns dos emails”, alegam. Em maio de 2019 a sua cotação atingiu 2, 72 euros, quando em abril de 2017 a sua cotação era de 1,017 euros, exemplifica-se na sentença.

Além disto, o Benfica tem uma lista de empresas de patrocinadores cujos contratos tiveram alguns problemas depois da divulgação dos emails. Um deles foi com a Fly Emirates, que foi alvo de comentários nas redes sociais por parte de pessoas de todo o mundo questionando como era possível uma empresa de tanto prestígio manter-se ligada a um clube desportivo corrupto. A Fly Emirates é uma multinacional com sede no Dubai, Emirados Árabes Unidos, e patrocina ao nível europeu um reduzido número de equipas de futebol profissional, nomeadamente AC Milan (Itália), Real Madrid (Espanha), Paris Saint-Germain (França) e Arsenal Football Club (Inglaterra).

3 – Como se defendem os réus?

O Futebol Clube do Porto, a SAD do Porto, ao FCP Media, que detém o Porto Canal, e o diretor de informação e comunicação do clube, Francisco J. Marques, dizem que os emails divulgados foram obtidos por Francisco Marques de forma lícita, por uma fonte anónima, não tendo havido qualquer acesso ilegítimo. “De entre os milhares destes emails, este Réu só divulgou uma ínfima parte”, depois de ter triado o seu conteúdo em função do interesse público, diz a defesa.

Quanto à concorrência, os portistas consideram não estar a violar a lei da concorrência uma vez que estavam a informar. E, dizem, mesmo que fosse uma ato de concorrência “não seria desleal ou ilícito, na medida em que não foram divulgados factos falsos”. Por outro lado, prosseguem, se não fosse o FC Porto a divulgá-los, a informação que constava nestes emails teriam vindo a público de qualquer forma.

Para o juiz, no entanto, “não faz sentido e não é provável que num clima de guerra aberta entre dois clubes rivais, existissem pruídos éticos na leitura de informação sigilosa, importante e relevante, que permitia senão copiar, pelo menos conhecer o adversário”. Dessa informação não foram apenas divulgados assuntos de interesse público, mas também temas que constituíam de facto segredo comercial.

“Os insultos de um dirigente em relação a um árbitro (sessão do dia 10.10.2017); o comentário do presidente da AA em relação a um “comentador (sessão de 13.12.2017); a cópia de uma publicação do FacebookB (sessão de 29.8.2017) e um pedido de ajuda material de um ex-colaborador do Benfica  (sessão de 31.10.17), não integram qualquer interesse público e por isso a sua divulgação é desnecessária, tanto mais que, não mereceram acompanhamento por parte da “sociedade”, lê-se na decisão.

4 – Que emails foram parar a Francisco J. Marques?

Os emails recebidos totalizam um volume de cerca de 20 gigabytes e foram enviados ou sob a forma de ficheiros pdf, obtido através de uma impressão eletrónica do próprio email, ou inseridos em caixas de correio eletrónico de utilizadores do SL Benfica e compactadas em ficheiros informáticos. No processo estão em causa quase 20 programas televisivos de divulgação, com cerca de 55 emails divulgados ao longo de quase um ano (10 meses). Esses emails e respetivos anexos (com ficheiros de imagem, pdf, etc.), envolviam, como remetentes ou destinatários, endereços de correio eletrónico do servidor “@slbenfica.pt” e foram remetidos também via email. Segundo a sentença continham 60 segredos comerciais.

Na maior parte dos casos, não foram divulgadas partes que dissessem respeito à vida íntima, familiar e sexual de pessoas neles referidas, também porque só alguns continham essa informação, disse a defesa e o juiz não contestou.

O diretor do Porto Canal, a pedido da FC Media, chegou a convidar dois dos visados nos emails (Pedro Guerra e Adão Mendes) para comparecerem no programa tendo em vista o exercício do contraditório, mas eles não aceitaram. O juiz, no entanto, considerou que este convite não foi qualquer exercício de contraditório, porque muitas mais pessoas havia para ouvir.

Por ordem judicial, Francisco J. Marques acabou por entregar, em junho de 2017, o suporte dos elementos informáticos à Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, no âmbito do processo criminal entretanto instaurado para apurar se houve crimes de corrupção e outros cometidos pela “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD” e/ou pelos seus administradores e dirigentes.

5 – Que segredos guardam os emails do Benfica?

No sistema informático da SLB SAD são guardados todos os documentos privados e confidenciais relativos ao negócio do Benfica, incluindo comunicações, correspondência e contratos com os respetivos patrocinadores, atletas, treinadores, propostas de negócio, projeções de desenvolvimento empresarial e desportivo, planos e estratégias empresariais, dados estatísticos, proveitos, custos e investimentos, acordos com a banca e investimentos e parcerias nacionais e internacionais,.

São considerados documentos secretos aqueles que até à data eram apenas conhecidos do Benfica e dos seus colaboradores internos e altos responsáveis diretamente envolvidos. Os termos e condições dos contratos de patrocínio, os valores envolvidos, as condições da sua renovação ou melhoria, a correspondência e comunicações entre o Benfica e os seus patrocinadores, as respetivas comunicações e mensagens são “valiosos segredos de negócio e são-no também porque são sigilosos e apenas conhecidos das partes contratantes”, lê-se na sentença.

O mesmo se pode dizer quanto às comunicações, à correspondência e contratos com jogadores, treinadores e outros colaboradores, dados pessoais sensíveis e anotações de fichas médicas, ou mesmo os documentos onde se pode ler sobre metodologias de treino e outras técnicas desportivas, à evolução de desempenho, às anotações e observações de jogadores, ao scouting desportivo (pesquisa e recrutamento de potenciais jogadores). Um manancial de informação que ao ser do conhecimento público poderia prejudicar o negócio da SAD, como se tentou provar em tribunal.

Nessa informação estão também elementos clínicos, como por exemplo a operação ao ombro da Judoca Telma Monteiro ou a análise das lesões que os jogadores da equipa de futebol profissional sofreram na época 2016/2017, podendo comprometer as contratações dos mesmos. “A devassa dessa informação pelos Réus fez com que as Autoras perdessem já muita da vantagem competitiva que lhes advinha da dita informação, porquanto um dos seus maiores concorrentes passou dela a ter conhecimento”, lê-se na sentença.

6 – Jorge Nuno Pinto da Costa, Fernando Gomes e Adelino Caldeira sabiam?

O tribunal deu como provado que Francisco J. Marques acedeu aos emails através de um contacto prévio via email com uma pessoa desconhecida, que lhe enviou alguns emails para amostragem. “Convencido do interesse e veracidade dos mesmos pediu a remessa de mais emails que recebeu inicialmente no seu email oficial do FCP SAD e mais tarde num email encriptado criado para o efeito”, lê-se.

A defesa do Benfica ainda tentou que a administração do Grupo Futebol Clube do Porto, para quem Francisco J. Marques trabalha, fosse responsabilizada, alegando que teria conhecimento e de que o responsável pela comunicação e informação do clube tinha agido sob coordenação de Pinto da Costa, Fernando Gomes e Adelino Caldeira.

Mas o juiz considerou “o plano global de ataque gizado pelos administradores não ficou demonstrado”. Ficou provado que de facto Francisco J.Marques recebeu um prémio pelo seu desempenho, “mas pouco mais”. O juiz considerou que nenhum dos membros da administração, muito menos o presidente, tiveram qualquer intervenção na divulgação destas informações do canal televisivo do grupo.

7 – O que decidiu o juiz?

Na tese do Benfica, a marca dos encarnados valerá pelo menos cerca de 350 milhões e o escândalo dos emails afetou o valor em pelo menos 5%, logo sofreram um dano de 17/18 milhões. Para o tribunal, no entanto, não há elementos suficientes “para fixar de forma séria e credível o valor de afetação da marca”, ainda mais quando “a opção por 3% ou 4% significa uma diferença de 3,5 a 4 milhões de euros”. Por outro lado, só existe indemnização quando os danos são permanentes, e se o Benfica recuperou, então não pode ser ressarcido de um dano temporário.

Ainda assim o juiz considerou que houve danos que ficaram efetivamente provados, até pelo exemplo deixado pelo diretor de expansão internacional, Bernardo Faria de Carvalho, que afirmou que devido à divulgação destas notícias “sentiu um impacto na renovação do aluguer de camarotes corporate logo em Julho, verbas de 1 milhão e meio”. Foi “muito mau”, disse, dando exemplos concretos.

“Compreendemos que culturalmente entre nós a culpa é sempre dos outros e nunca nossa, e pode ser imputada a tudo incluindo neste caso também, à divulgação de emails ou no caso da Ré ao polvo benfiquista”, ironiza o magistrado.

O juiz do tribunal cível do Porto considera também que houve, de facto, concorrência desleal. Porque, segundo argumenta, de facto os documentos divulgados são de natureza “secreta, lícita e economicamente valiosa” para as empresas que hoje em dia exploram o futebol. E não valeu a pena o FC Porto dizer que deles não tomou conhecimento, porque esse argumento não convenceu o juiz. “Por isso teremos de concluir que os atos em causa são evidentemente desleais”, diz. “Parece, pois, que qualquer comerciante médio, ainda que no meio particular do futebol, saberia que não pode ler correspondência alheia, nem apropriar-se de 20 GB de informação privada”, diz.

Quantos aos argumentos do FC Porto de que se limitou a dar informação de interesse público, o juiz lembra que Francisco J. Marques nem sequer tinha carteira profissional de jornalista e que não foram respeitados os deveres básicos para o Porto Canal agir como uma qualquer empresa televisiva. Os réus “pretendem efetuar uma “concorrência desleal” às empresas jornalísticas, considerando que lhes deve ser exigido menos do que a estas em termos de regras de conduta”, concluiu o juiz.

“Ora, é evidente e seguro que as suspeitas de corrupção, atentado contra a verdade desportiva e demais crimes públicos constituem interesse público. Mas, teremos de notar que, dos 20 programas emitidos pelos réus entre abril de 2017 e fevereiro de 2018 há casos evidentes de mero sensacionalismo, de tal modo, que, note-se nem sequer são justificados ou analisados nas alegações apresentadas”, diz.

O Benfica pediu para ser indemnizado por três razões distintas: pelos danos resultantes da violação dos seus segredos de negócios, pelo que isso afetou a marca e pelas despesas que tiveram para minorar esses danos e, por fim, pelas consequências desportivas para o clube.

No primeiro caso, o magistrado considerou que, de facto, o Porto não devia ter acedido a segredos do Benfica, mas não possui elementos suficientes para calcular de que forma esses danos podem ser quantificados. “Basta dizer que dos cerca de 60 segredos que foram objeto de apropriação, nenhum, absolutamente nenhum pode ser quantificado. O tribunal não sabe quanto custaram os relatórios, quanto valem as avaliações de atletas, etc, etc, etc., sabe apenas que todos eles em conjunto importam numa quantia relevante de vários milhões de euros.”

Quanto ao terceiro pedido, o juiz considerou que não foi possível provar estas consequências, nomeadamente a dos jogadores terem sido afetados pelo que se dizia do clube e, por isso, terem falhado na sua prestação em campo durante o campeonato da Liga dos Campeões. “É evidente que estamos numa missão impossível”.

Assim, restou o segundo pedido invocado, que resultou numa indemnização de dois milhões de euros.

Sónia Simões – Observador, 7 junho 2019

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