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Tempo para plantar, tempo para arder

12 de Agosto de 2018


Os media, em Portugal, abocanham os incêndios florestais com um misto de voyeurismo e de instinto assassino. Os demorados planos de labaredas recortadas num céu escuro e os grandes planos de caras sofredoras e queixosas alternam com uma retórica antigovernamental onde é difícil distinguir entre erros causados pela ignorância e manipulações intencionais puras e duras. Lembro que a manipulação não é, necessariamente, sinónimo de mentira. Pode-se distorcer totalmente a percepção do público através de técnicas de extrapolação, amplificação desproporcionada e indução de conclusões a partir de uma reconstrução da realidade que ignora factos determinantes.
As contradições nas coberturas dos incêndios são acentuadas pelo trabalho sério de muitos repórteres, cuja experiência, conhecimento e objectividade contrastam com as más práticas dominantes. (JAG)

Durante os incêndios, somos bombardeados com as inevitáveis referências aos eucaliptos, à reordenação da floresta, ao caos no comando, etc. Este é o cenário a que estamos habituados, ano após ano. 

Mas, pergunto eu agora, que fazem no intervalo dos incêndios os preocupados media? Fazem o seguimento da temporada de fogos, tentando descobrir se alguma coisa mudou, se alguém beneficiou com o desastre, se estão a ser recriadas condições favoráveis à repetição de grandes incêndios? Promovem discussões de especialistas que contribuam para a mudança do paradigma actual?

Não é preciso um aturado trabalho de investigação para concluir que esses preocupados media estão cheios de publicidade às celuloses, de comunicados de imprensa de celuloses disfarçados de notícias, de entrevistas a responsáveis por interesses ligados às celuloses, entre os quais, naturalmente, os bancos financiadores. E por falar em bancos, quem, nas redacções de todos os media, tem ideia da recomendação do Banco Mundial, há 40 anos, que reservava para Portugal, num plano de “divisão de trabalho” internacional, a função dominante de produtor de pasta de papel? Os resultados estão à vista. Tal como a conjugação de interesses do Banco Mundial com a indústria de celulose, através do seu organismo International Finance Corporation.

É como se houvesse um tempo para plantar e um tempo para arder.

Estas palavras servem para introduzir dois textos que circulam na Internet e que têm origem num post da historiadora Raquel Varela no Facebook. 

Talvez sirvam para despertar alguma consciência jornalística. Talvez não. Neste “teatro de operações”, limito-me a desempenhar o meu papel de bombeiro voluntário.

João Alferes Gonçalves

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Há 25 anos Fernando Varela alertava para o perigo dos eucaliptos na serra de Monchique

Em artigo publicado no DN em 1993, o engenheiro silvicultor apelava a que as autoridades olhassem “para além do petróleo verde”, referindo-se ao eucalipto.

Imaginem só como podia ser paradisíaca a serra de Monchique com menos eucaliptos, com uma bela floresta diversificada.” O desabafo foi feito por Fernando Varela, engenheiro silvicultor, num artigo publicado na revista do Diário de Notícias em 1993, tal como recordava ontem a historiadora Raquel Varela num post no Facebook, lembrando ainda como há três décadas o pai “fez um plano de reflorestação de Monchique”.

“O ‘plano de Monchique’, que, entre outras coisas, previa floresta mediterrânea autóctone para evitar os fogos nunca saiu da gaveta dos serviços florestais, trancada a sete chaves pelos interesses ultraminoritários da pasta de papel, um Estado dentro do Estado que faz este país arder e nós todos pagar para apagar fogos que não podem ser apagados nem controlados, apesar de hoje gastarmos uma parte dos impostos cada vez maior em meios de combate aos incêndios, um gigante orçamento que umas horas de vento engolem de um trago”, escreveu a historiadora no dia em que o incêndio que arde na serra de Monchique desde sexta-feira passada atingiu o seu ponto mais complicado, ameaçando a cidade.

Engenheiro silvicultor, Fernando Varela foi subdiretor regional de agricultura e, nessa condição, deu parecer negativo ao abate de sobreiros no caso Portucale. Sempre lutou contra a eucaliptização do país e pensou o equilíbrio entre campo e cidade, lembra a filha.

No texto publicado em 1993 e intitulado “Para lá do petróleo verde”, Fernando Varela afirmava que “os principais problemas que afetam o setor florestal português – incêndios, eucaliptização, degradação da floresta mediterrânica, subaproveitamento das potencialidades – só podem ser resolvidos se dos responsáveis aos quadros intermédios houver capacidade para uma abordagem sistémica, uma visão macroscópica e uma conceção ecológica e patrimonial da floresta.”

“Os incêndios consumiram em Portugal desde 1974 perto de um milhão de hectares de floresta – para cima de 1/4 do total – com especial gravidade nas áreas de pinhal. O corte das madeiras queimadas tornou-se o modo mais comum da exploração florestal e à sombra das chamas e até do seu combate e da rearborização dos ardidos fecharam-se ciclos infernais de negócio e demagogia”, escrevia este especialista. “Os soutos e carvalhais têm vindo a diminuir desde o começo do século (são hoje pouco metade do que eram em 1928), os montados começaram a diminuir nos anos 1950 e os pinhais apenas com os incêndios dos últimos 20 anos. Ao invés, as matas de eucalipto cresceram desde números irrisórios em 1960 para 200 mil hectares em 1978 e mais de meio milhão na atualidade.”

Além destes problemas, identificava outros, relacionados com o tipo de propriedade (privada ou estatal). E concluía: “Sem enfrentar a mudança das estruturas – como fizeram no passado os países europeus mais prósperos – não haverá nem floresta de produção nem proteção da natureza. (…) Não será tarefa fácil e necessita de criatividade. Necessita, além disso, do consenso e da vontade das várias forças políticas num pacto, muito para além do horizonte temporal de umas eleições.”

O incêndio continua incontrolável no Algarve e a filha de Fernando Varela não esconde a mágoa: “[Ele] fez um plano, com colegas, centenas de horas de cartografia militar, estudo do clima, florestas, agricultura, território, milhares de horas de viagens, desenhos, reflexão. Está na gaveta, já conheceu uma dúzia de ministros o tal do plano. Intacto, ao contrário da serra de Monchique, destruída.”

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Reflorestação? “O Estado serve interesses minoritários das celuloses”

A historiadora Raquel Varela recorda plano de reflorestação elaborado pelo seu pai para Monchique, há 25 anos, e critica o Estado por “servir os interesses” da indústria do papel e da celulose.

Ler mais (País ao Minuto)

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1 Comentário »

  • Manoel Brito said:

    MUITO BOM O ARTIGO DO JAG, BEM COMO OS OUTROS DA HISTORIADORA RAQUEL VARELA E DO SEU PAI.

    E QUE FAZER??

    NESTE, COMO NOUTROS ASSUNTOS QUE NOS AFLIGEM E NOS SUFOCAM, PENSO QUE SÓ NOS RESTA

    DIVULGAR, JÁ QUE PARA UMA VERDADEIRA SOLUÇÃO, SOMOS INFELIZMENTE, IMPOTENTES.

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