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A parábola do elefante e os massacres na Síria (Valdemar Cruz)

Um dia, um príncipe indiano chamou ao seu palácio seis cegos de nascença. Reuniu-os num pátio e de seguida mandou trazer um elefante, animal cuja existência ignoravam. De seguida convidou-os a apalpá-lo. Cada um ateve-se a uma parte do corpo do paquiderme. Quando tiveram de descrever como era o elefante, as opiniões dividiram-se conforme a parte que cada um tocara. A discussão assumiu proporções inesperadas, ao ponto de uns começarem a acusar os outros de desonestidade. O príncipe interrompeu a algazarra criada para lhes dizer que nada do que cada um deles dizia era mentira. Porém, constituía apenas uma parte da verdade. Sugeriu-lhes a humildade de experimentarem juntar a experiência por cada um deles vivida para, então sim, conseguirem imaginar como a junção daspartes poderia formar o todo que é o elefante.

Não deverá haver, na história recente, conflito ao qual com tanta e dolorosa veemência se possa aplicar a parábola dos cegos e do elefante como a tragédia vivida na Síria desde há vários anos. Todos os dias, a todas as horas, são disparadas bombas letais, responsáveis por incontáveis mortes de homens, de mulheres, de crianças.

Quando o sofrimento é tanto, quando a dor é tão indescritível, quando a indiferença é tão cruel, quando a morte é o banal respirar de um quotidiano rasgado por veredas afogadas em tanto sangue [1], tanta raiva, mais absurda se torna ainda a outra guerra, a decorrer em simultâneo. Não no longe de uma Síria devastada. Mas frente ao nosso olhar. Muito perto. À distância de um ecrã de televisão, de uma primeira página de jornal. É uma guerra mediática sem espaço para a memória, sem inocência, sem tempo para a reflexão, sem lugar para perceber como na Síria decorre “uma guerra com muitas guerras dentro [2]”.

A citação que fecha o parágrafo anterior é parte do título de um dos trabalhos publicados na notável edição especial gratuita do Expresso Diário integralmente dedicado à Síria [3]. É indispensável ler. Para quem se contenta com o retrato fragmentado. Ou para quem prefere o retrato inteiro. Desde artigos de opinião [4], a depoimentos [5]reportagens [6] e textos de enquadramento [7], está lá tudo. Ou quase tudo. Outras perspetivas seriam ainda possíveis. O tudo é a impossibilidade de que fala a personagem masculina no primeiro diálogo de “Hiroshima Meu Amor”, de Marguerite Duras (filme de Alain Resnais [8])? – “Tu não vista nada em Hiroshima. Nada”. Ela responde: “Vi tudo. Tudo”.

O filósofo britânico, economista e defensor do liberalismo político Jon Stuart Mill (1806-1873), [9] dizia que aquele que só conhece o seu lado do problema, na verdade não conhece nada. E a Síria é um problema com muitos lados. Demasiados lados.

Daí a relevância desta edição do Expresso Diário. Ficará como documento. Como registo de uma memória. Essa mesma memória que nos faz recordar a fala da mulher em “Hiroshima Meu Amor [10]”, quando diz: “Como tu, também eu tentei lutar com todas as minhas forças contra o esquecimento. Como tu, esqueci. Como tu, desejei ter uma memória inconsolável, uma memória de sombras de pedra”.

O esquecimento é tão poderoso como a morte. Por isso é crucial não esquecer. Já que, como se diz no Diário, a Síria é o tabuleiro e os sírios os peões de uma guerra de xadrez que, um dia, será lembrada como o grande conflito mundial deste milénio. Entre motivações estratégicas, financeiras, políticas e religiosas há todo um mapa de interesses que, direta ou indiretamente, contribuíram para a morte de centenas de milhares de pessoas nos últimos sete anos.

Valdemar Cruz – Expresso Curto  02 março 2018