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O País Invisível (Valdemar Cruz)

21 de Julho de 2017


Todas as sociedades constroem os seus próprios invisíveis. Com frequência é a literatura a resgatá-los dos abismos do silêncio e a dar-lhes corpo e voz. Transporta-os, de uma ausência, para uma presença avassaladora à qual passa a ser impossível ficar indiferente. Foi assim com Ralph Ellison e o seu “Homem Invisível”, o implacável retrato, publicado em 1952, de um homem cuja cor o torna invisível para a sociedade norte-americana. Ou, no contexto português, e para nos ficarmos apenas com dois exemplos, assim aconteceu com “Levantado do Chão”, de José Saramago. Publicado em 1980, puxava para primeiro plano o mundo rural e as lutas dos trabalhadores agrícolas. Por norma, pobres, desfavorecidos, negros, ciganos ou outras minorias tendem a ocupar o espaço mediático apenas quando um incidente, ou um acidente, desencadeia uma tempestade noticiosa e, momentaneamente, os coloca como alvo de todas as atenções. Os mais recentes incêndios desencadearam um caudal noticioso incapaz de permanecer indiferente à distante e cruel ruralidade para que estão remetidos tantos portugueses. As declarações de um candidato autárquico do PSD sequioso de protagonismorecolocaram os ciganos no foco das notícias.
O impacto gerado pelas movimentações empresariais da Altice, uma empresa franco-israelita dona da PT, deram nova visibilidade às lutas laborais no universo da empresa. Para quem esteja distraído, até parece estarmos perante um problema novo, quando se anuncia a greve geral dos trabalhadores da PT marcado para hoje. Não se verificava uma mobilização similar contra a degradação das condições de trabalho desde 2016. Isso significa, porém, que estamos em presença de uma luta antiga, como antiga é a degradação resultante da desastrosa e criminosa privatização da PT, porventura agravada agora com novas orientações da nova gestão. Os trabalhadores receiam despedimentos em massa, contestam transferências entre empresas vistas como antecâmara de despedimentos e denunciam um ambiente intimidatório. Desde a entrada da Altice na PT já saíram da empresa mais de 1 300 trabalhadores e há perto de 400 sem funções atribuídas, o que, além do mais, é ilegal.
O título deste Curto roubei-o a uma coletânea de contos (que menciono mais abaixo) construída à volta das ruínas do país interior e das constantes tensões entre o mundo rural e o mundo urbano. É uma dicotomia antiga, já assinalada por Fernando Pessoa no poema “Ó sino da minha aldeia”. Nas últimas décadas, com a desregulamentação laboral, a ostracização dos sindicatos, a criação de um ambiente hostil a qualquer reivindicação laboral, tem vindo a ser criado um outro país invisível. Não afeta já exclusivamente os pobres, os negros, os ciganos ou outras minorias, étnicas ou não, mas entra bem fundo pelo interior da empobrecida classe média gerada pelo mundo do trabalho que temos. A par das névoas muitas névoas já criadas, há um novo país invisível e silencioso a preencher o nosso quotidiano.

Valdemar Cruz – “Expresso” Curto 21 julho 2017

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