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Não fiquem cansados tão depressa: o mal é mais tenaz do que o bem

16 de Abril de 2017


Há momentos em que a acalmia é um perigo. Há ainda piores momentos em que o cansaço domina. Não estamos em tempos de acalmia, nem em tempos de ficar cansados perante o que se está a passar. Dois temas de enorme, insisto, enorme relevância, exigem toda a atenção, pouca acalmia e nenhum cansaço: para o mundo, Trump; para Portugal, a Europa. (José Pacheco Pereira)

Trump é um perigo de dimensões mundiais e pode conduzir o mundo ao patamar de uma guerra. Acredito que possa ser travado e que vai ser travado, como já o está a ser em muitas matérias, pelo funcionamento exemplar da democracia americana, mas o risco existe. A resistência a Trump vinda da própria Administração americana, em particular dos seus círculos mais sensíveis ao risco — as Forças Armadas, os serviços de informação — e depois a própria administração civil, os juízes, e a opinião pública e os media, tem sido um travão consistente quer aos seus procedimentos, quer ao radicalismo ideológico de parte da sua corte de assessores. Dá-se, aliás, um crescente divórcio entre os seus nomeados civis, muitos de grande incompetência, outros com motivações ideológicas ou interesses pessoais e corporativos, e o núcleo de militares, que, com uma ou outra excepção, tem experiência de combate e de direcção de homens, que os leva a serem muito prudentes e terem consciência dos riscos de puxar pelo gatilho à cowboy, que é o que Trump faz. Felizmente que a sua admiração adolescente pelos “generais” levou-o a escolhas mais sólidas nas áreas da defesa, e isso explica algumas viragens de 180º em matérias como a OTAN.

Por outro lado, um dos efeitos mais positivos do “efeito Trump” é uma grande melhoria qualitativa dos media americanos, em particular da imprensa escrita e de alguns canais de cabo. Os media “liberais” cometeram grandes erros no modo como acompanharam a campanha eleitoral e como muitos intelectuais e académicos menosprezaram Trump e ignoraram as fontes da insatisfação que o impulsionou à presidência. Ao mesmo tempo, menorizaram os erros da Administração Obama e a arrogância da campanha de Hillary Clinton e as suas ligações perigosas. A cegueira sociológica face às motivações do “povo de Trump” leva hoje os historiadores a reavaliarem partes da história americana, tentando compreender, no sentido weberiano, porque não viram o que agora está à vista de todos. Hoje, jornais como o New York Times, ou o Washington Post, os “fake news” de Trump, publicam alguns dos melhores artigos de sempre sobre o que se está a passar nos EUA. Já é tarde, mas mais vale tarde do que nunca.

Esse esforço tem um papel militante e ajuda à mobilização social e a uma cultura de recusa que está a condicionar os partidos políticos, como se vê no próprio Partido Democrata, cujas bases não querem qualquer cedência a Trump. Trata-se de um efeito inverso daquele que permite a Trump ameaçar os congressistas e senadores republicanos de que, se não lhe obedecerem, fará campanha contra eles quando forem a eleições. Os democratas nos seus encontros com os eleitores recebem lições de intransigência contra Trump, os republicanos, reacções mais contraditórias. Mas esta mobilização não se verificava há muito tempo no sistema político americano.

Porém, o homem já lá está. O que é mais perigoso em Trump, mais até do que algumas opiniões isolacionistas e demissionistas das responsabilidades americanas, é o seu carácter errático. O espectáculo assustador do homem mais poderoso do mundo mudar de opinião como quem muda de camisa torna-o um perigo para o mundo, porque introduz uma irracionalidade militante e agressiva no sistema de equilíbrios mundiais, e tal acontece sem qualquer direcção definida e muitas vezes por futilidades. Há muito de artificial no agravamento das tensões mundiais, mas esse agravamento existe e com Trump será sempre assim.

Neste contexto, é evidente que as sucessivas mudanças de opinião de Trump geram confusão. Com facilidade, a comunicação social e o comentário vêem-se confrontados com um presidente que antes louvava Assad e agora o considera um assassino, com um amigo e admirador de Putin e agora seu opositor; antes a OTAN era absoleta, agora “já não é”, e por aí adiante. Percebe-se que muitas destas mudanças não têm outro fundamento que não seja ter visto pela manhã, enquanto escreve no Twitter, um noticiário da Fox ou uma fotografia mais cruel, ou ter a filha Ivanka, com quem tem uma relação mais do que dúbia, a pedir-lhe alguma coisa simples como seja bombardear a Síria, ou reagir a uma reportagem que o enfureceu. O homem, que tem à sua disposição alguma da melhor informação existente no mundo e a possibilidade de ouvir alguns dos maiores especialistas sobre que matéria for, decide por instinto e por arroubos, de forma caótica e sem nexo.

Como sempre acontece, há quem construa um edifício de racionalidade à volta do caos, um “grande plano”, e lhe atribua uma enorme inteligência táctica e para isso tem de estar sempre a interpretar o que ele faz como fazendo parte de um plano brilhante que ele executa milimetricamente, dando apenas a impressão de caos para nos distrair, onde há uma ordem intencional. Talvez, mas duvido. Quando se lê os seus tweets, que, como já referi, são uma maneira de o perceber demasiado bem, vê-se que o homem de sofisticado não tem nada. É bruto, ignorante, mentiroso, dado a fantasias, habituado ao bullying, sem princípios, moral ou vergonha, egocêntrico até ao limite.

Trump , por exemplo, amua. Muitas vezes não é preciso ir mais longe para perceber o seu modus operandi, do que o interpretar como um adolescente contrariado que amua e faz birra. E o pior de tudo é que recebe muitas vezes o benefício do infractor de gente que deveria ser muito mais prudente do que acreditar num Trump vergado, forçado, moldado pelos seus próximos a uma sensatez que nem ele nem esses próximos têm. Por isso, é penoso ver a facilidade com que Trump acaba por receber elogios sempre que muda, de um momento para o outro, de opinião. Como se o Trump do ataque à Síria ou o atlantista reencontrado fosse bom e aliviasse o mundo por o ter do lado “certo”. Na verdade, um homem como Trump não está nunca do “lado certo”, porque o seu único lado é a sua voz interior dentro da cabeça e, juro-vos, que é a última voz que desejaria ouvir. Infelizmente o mundo todo agora tem de a ouvir.

Um homem destes suscita uma enorme reacção, mas, mais do que isso, molda a sociedade que o fez e onde habita. Ele radicaliza os seus fiéis a uma aceitação intransigente de tudo o que faz e alimenta uma postura que mimetiza a sua, gera milhares de pequenos Trumps. Esses pequenos Trumps deslocam-se para onde há qualquer fragmento de autoridade que lhes permita imitar o seu mestre: para as polícias, para a segurança, para os lugares de supervisores, de capatazes, de fiscais de qualquer coisa, seja do estacionamento seja de líder de claques ou chefes da praxe. O mundo solitário que nós construímos nas cidades está especialmente bem adaptado a estes pequenos Trumps, como o comportamento agressivo nas redes e a nova ignorância que emerge associada a tecnologias usadas socialmente para reproduzir comportamentos que põem em causa adquiridos civilizacionais e nos empobrece.

Ele vive na “pós-verdade” e nos “factos alternativos” e gera um “povo alternativo”, cujas fontes se encontram não apenas na profunda insatisfação de milhões de americanos, mas na forma como essa insatisfação tem hoje de se manifestar politicamente — em rede nas redes e na televisão popular, cheia de sangue, preconceitos, medos e racismo, e nos dois casos com uma visão simples dos problemas e do mundo.

Trump não é brincadeira nenhuma, é the real thing. Vai exigir muita perseverança, muito trabalho, muito apego à liberdade, e muito amor à decência, para ser vencido. Este tipo de homens e o exemplo que dão são um perigo público, por isso têm de ser contidos e depois vencidos, na opinião, na influência, nos tribunais, pelo primado da lei e, por fim, nas urnas.

(Para a próxima fica a Europa, que, com a nossa quase indiferença, caminha num sentido que é cada vez mais hostil aos nossos interesses como povo e país.)

José Pacheco Pereira – “Público”  15 abril 2017

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