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O jornalismo, “os jornalistas” e as distinções necessárias

28 de Setembro de 2014


Logo que o escândalo BES rebentou surgiram diversas vozes afirmando o seu indignado espanto pelo facto de ao longo dos anos a comunicação social nunca ter investigado nem denunciado as falcatruas no reino do Espírito Santo, e daí partindo para mais ou menos pomposas, mais ou menos moralistas, acusações “ao estado a que o jornalismo chegou” e “aos “jornalistas que temos”.

Colocar no banco dos réus e acusar generalizadamente “os jornalistas”, no caso do BES como noutras situações, pode ser fruto de leviandade,  ignorância… ou segundas intenções. Conduz, de qualquer modo, a uma análise, no mínimo, perigosamente simplista – ou ardilosamente montada… – no sentido de encobrir e desviar as atenções do lugar dos jornalistas na produção da informação e do papel dos media na sociedade capitalista, e concretamente em Portugal. (Fernando Correia)

Não são os jornalistas, mas sim os proprietários dos grandes grupos económicos, que mandam na comunicação social dominante – jornais e revistas de grande expansão, estações de rádio e de televisão de âmbito nacional, sítios online. E dominante por isso mesmo: está nas mãos da classe dominante e os conteúdos que veicula dominam a informação e a opinião a que a generalidade das pessoas tem acesso, assim condicionando os gostos, hábitos e  comportamentos dos portugueses.

Para além da natureza da propriedade há outros elos da cadeia que não podem ser esquecidos. O mais importante é a publicidade, principalmente a dependente dos grandes grupos, nacionais e multinacionais, ligados ao núcleo duro do capitalismo, com peso absolutamente decisivo na economia dos media, mas que se reflecte também, directa ou indirectamente, nos conteúdos, incluindo os informativos. É a conquista de publicidade que preside às estratégias dos media porque é ela que dá lucro aos media – lucro financeiro mas também, tendo em conta os conteúdos divulgados, lucro político e ideológico.

Uma abstracção

Mas atenção: “os jornalistas” são uma abstracção. Quando se acusam “os jornalistas” – e o caso BES é apenas um exemplo – da qualidade e do sentido da informação e da opinião que nos chegam, de quem estamos a falar?

Das centenas que nos últimos anos têm vindo ou estão na iminência de ser “reestruturados”, “rescindidos”, empurrados para a “reforma” ou simplesmente despedidos? Dos que vêem os salários reais diminuídos, os que nada recebem pelas horas extraordinárias, os que são impedidos de progredir na carreira e no vencimento, os que têm contrato com um jornal e, sem receber mais um cêntimo, têm de trabalhar para o online, a rádio ou a TV do grupo? Dos precários, os pagos à peça, os freelancer não por opção mas por lhes ser recusado contrato? Dos estagiários curriculares, utilizados de borla e de cara alegre, como substitutos dos profissionais que já lá não estão? Dos que praticam todos os dias, agarrados ao computador, um noticiarismo muitas vezes pouco estimulante mas que é útil? Dos que têm por tarefa correr as portas dos tribunais e das sedes partidárias em busca de uma frase bombástica ou de uma mexeriquice que faça manchete ou abra um noticiário? Dos que vêem as suas propostas para uma reportagem ou uma investigação serem recusadas porque “não há dinheiro” ou são “inconvenientes” à “linha” do órgão, isto é, ao interesse comercial ou político dos patrões?

Dos que, ocupando ou não lugares de coordenação, de forma responsável e paciente orientam,  corrigem e ajudam o trabalho dos menos experientes, entregues quotidianamente a uma rotina essencial à qualidade do produto final e à necessidade de que a edição esteja pronta a tempo e horas? Dos que, discreta mas honradamente, longe dos holofotes, desenvolvem trabalho de qualidade, incluindo em lugares de responsabilidade executiva ou realizando investigações de importante significado social e político, aproveitando as brechas abertas pela guerra das audiências?

Uma certa elite

A verdade é que para além destes profissionais, outros há – uma pequena minoria – que, ocupando posições de direcção e de responsabilidade editorial, funcionam como veículos privilegiados de transmissão, quer para dentro das redacções quer para o exterior, das orientações das administrações e dos interesses que elas representam. Deles não será de esperar a iniciativa de investigar os meandros dos negócios dos banqueiros, dos patrões da grande distribuição e de outras empresas que financiam a comunicação social…

Muitos assinam colunas na imprensa, têm lugar cativo em painéis televisivos, misturam impudicamente a notícia com o comentário. E a sua visibilidade, proporcionada pela presença televisiva, leva a que muitas vezes a sua imagem se transforme na imagem que se tem dos jornalistas em geral.

É óbvio que as generalizações têm de ser evitadas. Não seria correcto cair no simplismo de dividir a pirâmide das salas de redacção entre “bons”, os que estão em cima, e “maus”, os que estão em baixo. Necessário é termos consciência dos mecanismos da produção da informação e da existência de uma certa elite jornalística, com um papel essencial na concretização da função determinante dos media na sobrevivência e promoção, em geral, do sistema capitalista, e em concreto dos interesses do grande capital e das políticas e dos políticos ao seu serviço. Como, hoje e aqui, bem sabemos.

 Fernando Correia – “Avante!”  25 setembro 2014

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