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Relação da justiça com os media é «um problema bicudo»

8 de Agosto de 2014


O Ministério Público vive de costas voltadas à comunicação social. Por sistema, aponta-lhe o dedo da violação do segredo de Justiça. Umas vezes teme-a, outras tantas manipula-a.
A Justiça é propriedade reservada, onde o país é interdito de entrar. Comunica por artigos. Quando o faz, é a confusão e a dúvida. Pousa uma informação aqui, outra acolá. Navega à toa sobre as águas turvas da casuística.
Essa relação da Justiça com a comunicação social permanece um problema bicudo. (Alberto Pinto Nogueira, Procurador-geral adjunto)

Sempre tive um grave problema com os jornalistas

Uma caterva de jornalistas estacionou à porta da Procuradoria-Geral da República. Quando o procurador-geral saiu, assaltou-o com perguntas sobre certo processo mediático. Cunha Rodrigues, que era o procurador-geral, com seu ar asceta, adiantou: “ …Sempre tive um grave problema com os jornalistas. O que eles querem saber, eu não lhes posso dizer, o que lhes posso dizer, eles não querem saber…”

As relações da Justiça com a comunicação social (CS) estiveram no centro das preocupações de Cunha Rodrigues. Tinha a consciência política de que a Justiça não é coutada do sistema judiciário. Os seus dossiers matéria exclusiva dos “agentes da Justiça”. Assuntos de Justiça são assuntos de Estado. De cidadania.

Desde então, nunca mais o Ministério Público se preocupou seriamente com a matéria. Não mais se lhe viu um pensamento coeso e estruturado sobre a comunicação social.

Vive de costas voltadas à CS. Por sistema, aponta-lhe o dedo da violação do segredo de Justiça. Umas vezes teme-a, outras tantas manipula-a.

A Justiça é propriedade reservada, onde o país é interdito de entrar. Comunica por artigos. Quando o faz, é a confusão e a dúvida. Pousa uma informação aqui, outra acolá. Navega à toa sobre as águas turvas da casuística.

Essa relação da Justiça com a CS permanece um problema bicudo.

Sob o ponto de vista jornalístico, importante é o que está resguardado. No limite, oculto atrás das cortinas opacas do segredo de Justiça. Aí é que estão os factos novos a narrar nas primeiras páginas dos jornais e na abertura dos telejornais. Novos e mais apelativos. Pela sua natureza, pelo estatuto social ou político dos suspeitos. Isso é notícia. Narração de factos desconhecidos. Se possível, bombásticos. O que toda a gente sabe não é notícia.

Há uma tensão óbvia. A CS tudo quer saber para informar. Informar e já. A notícia é uma mercadoria que se expõe no mercado. Independentemente do chamado interesse público. Dá prevalência ao interesse do público. Ao que “queremos saber”. Debate-se com a concorrência.

A Justiça sabe que a publicitação de certos factos pode fazer naufragar irremediavelmente a investigação e o êxito da própria Justiça do caso. Refugia-se no segredo de justiça que, muitas vezes, nem foi declarado. Não existe.

Cabe-lhe a defesa do interesse público.

A Justiça não é um bem de mercado. Não é tornada pública por “critérios rentáveis”. Antes por critérios de interesse público. De verdade.

Tem de dizer “o que precisamos saber e o que deveríamos saber”. Como cidadãos. Está indisponível a curiosidades. Não pode actuar de modo privilegiado ou atomístico, informando uns, sonegando informações a outros.

Informa o país. Informa sobre a Justiça do país. Não se limita à Justiça de Lisboa.

Não alimenta justicialismos, interesses do público, o carreirismo e exibicionismo de órgãos de justiça. Apenas porque o arguido é banqueiro, foi primeiro-ministro ou é vice-primeiro-ministro. A informação à comunidade não pode travestir-ve de câmara de acusações ou centro de lavagem de responsabilidades criminais dos poderosos.

Só a definição de princípios de informação, de uma política de agenda própria sustentam uma comunicação de interesse público. Com ética. De Estado.

Onde não há política e princípios, há casuística. E coxa!

Alberto Pinto Nogueira, Procurador-geral adjunto – “Público” 07 agosto 2014

 

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